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domingo, 22 de março de 2015

O Menino do Turno Noturno


Ela, uma garota super segura de si e do seu trabalho. Uma professora. Uma professora jovem de uma faculdade particular. Desde que começou a ensinar, sentia que tinha o talento para a coisa. Estava ensinando a 12 turmas naquele semestre, super atarefada, caixa de emails cheia; e bastante orgulhosa por ter chegado onde estava, antes dos trinta.

Já ensinava havia algum tempo, nem sentia mais o conhecido nervosismo anterior a cada nova aula. Tinha virado rotina. Até que, por alguma razão, algo mudou durante umas de suas primeiras aulas do turno noturno. 

Um garoto de mangas compridas entrou na sala, atrasado, e sentou lá no fundo, encostado à parede. A sala estava organizada em "U", a um metro de distância das paredes, com apenas uma fileira. O menino sentou atrás da fileira. As meninas que estavam à frente abriram um espaço para ele entrar na fila, mas ele disse para não se incomodarem, que queria ficar por ali mesmo. O menino era diferente, a professora notou. Tinha alguma coisa nele.


Estava acabando de contar do que se tratava a matéria e sobre o que iriam estudar no decorrer do curso, indicando já um capítulo. Enquanto falava, sentiu uma vontade de rir, mas não sabia explicar o que era. Sentia que tinha alguma coisa a ver com o garoto. Ele estava evitando o seu olhar, agindo de forma estranha.

Nessa aula, tinha planejado uma dinâmica diferente, para interagir a turma. Pediu que cada aluno escrevesse sobre si mesmo como se fosse um remédio, dizendo quais são os seus efeitos colaterais, os bons efeitos e as suas indicações.

Depois de 10 minutos de espera, foi passando a palavra de um em um, e o pessoal foi contanto "sou divertido, sou legal, não recomendado para pessoas impacientes, uma dose de mim cura o tédio...", até que chegou a palavra àquele menino que sentou por trás da fila. Logo que sua atenção repousou nele, pensou: "como pode estar tão à vontade?" O menino estava com as pernas cruzadas em cima da cadeira, como ficam esses meninos que costumam meditar.

- Você - disse a professora apontando para ele.

O garoto tinha anotado o que iria falar no caderno. Antes de começar a ler, ele disse:

- Pode parecer meio bobo, então, por favor, peço que não me julguem - o menino se sentiu estranho ao dizer. Depois deu um fundo respiro e prosseguiu: - É... o nome do remédio é "amor". Os efeitos colaterais são...

"Que gatinho", pensou a professora enquanto observava ele falar. O menino tinha o cabelo cheio, ondulado até o pescoço, caído para um lado em frente aos olhos. Tinha umas mechas na frente pintadas em um loiro dourado.

- ... perda do passado e do controle. Contra indicações: é contra indicado em caso de sentir medo de perder o que construiu e foi até o dia em que começou a usá-lo.

"Esse menino é diferente, quantos anos será que ele tem? 23?", pensou a professora ao mesmo tempo em que sentia a sua respiração mudar de ritmo. Ficou um pouco nervosa, mas tinha que disfarçar.

- Posologia: - continuou ele - usar sempre que sentir um impulso verdadeiro que peça a sua utilização. Tomar bastante cuidado para não usá-lo sem o impulso. Pode acabar estragando o tratamento.

Quando o garoto terminou de falar, a professora agradeceu e passou rapidamente a palavra a outro aluno, como se não tivesse acontecido nada de diferente. Quando chegou em casa, ficou pensando um pouco no menino que tinha falado de amor. Por que sentiu aquela vontade de rir? Por que estava evitando o seu olhar no começo da aula? Por que falou de amor? Por que era diferente dos outros?

Na outra semana, no dia de aula daquela turma, logo quando o dia começou, a professora se sentiu nervosa como já não se sentia há tempos. Estava sentindo algo parecido com o nervosismo que sentiu na primeira vez em que ia dar aula, sentindo que tinha que dar uma boa aula. Suspeitava que tivesse algo a ver com o garoto, mas queria evitar que isso fosse verdade. Era um aluno dela. Isso era impossível, não podia acontecer.

Quando entrou na sala, logo avistou o menino. Estava no centro da sala, ouvindo música com fones de ouvido, um pouco atrás. Caminhou até a mesa do professor com a sua maleta e assim que despejou as coisas sobre a mesa, levantou o rosto e o seu olhar encontrou-se, sem querer, com o olhar do garoto. Estava olhando para ela. Ele fez um aceno de sobrancelhas. A professora retornou o mesmo aceno, no instinto, e então olhou para baixo. Ficou mais nervosa. Tentou disfarçar, "será que ele percebeu?", mas acreditou que não.

O garoto sentou um pouco afastado do amontoado, puxando uma cadeira para perto, onde colocou a sua mochila. Ele tinha uma estrela pendurada ao pescoço, perto de uma cruz dourada. Era um menino bonito.

Ele copiava tudo o que a professora falava, enquanto estava todo mundo apenas olhando fixo para ela. Ele parecia muito à vontade. Os seus movimentos eram espontâneos, como se estivesse em casa. Se destacava em meio a toda a turma.

No decorrer da aula, o garoto fez uma participação, discutindo um assunto com a professora que tinha a ver com o capítulo que ela havia pedido para ler, na aula anterior. Ela tinha uma ideia, ele tinha outra, e ambos pareceram ter se irritado um pouco quando as ideias se chocaram.

Depois de um tempo, o menino cruzou o joelho em cima da cadeira, encostando a cabeça nele, numa posição meio triste, olhando para a professora com um olhar baixo. Tudo o que aquele garoto fazia estava chamando a sua atenção. Mas tinha que disfarçar, olhar para ele como se fosse igual aos outros e evitar a gravidade que puxava os seus olhos. Era a professora, agir diferente disso seria antiético.

Apesar de gostar do seu trabalho, se sentia meio solitária às vezes, principalmente nos finais de semana. Estava ensinando a muitas turmas, vendo muita gente todos os dias; mas estava sempre sendo a professora, quase que a todo momento, mesmo quando estava em casa, porque tinha que organizar os slides. 

Aquele garoto despertou de novo a menina que parecia até ter se esquecido de existir, mas uma menina que começou a ficar triste. Queria se aproximar do menino, demonstrar algo. Ele estava sempre sentando por perto, e de algum jeito deixava transparecer um interesse diferenciado dos outros. O seu olhar era especial. Não havia agressividade, nenhum sinal de cobrança. Ele tinha um olhar terno, respeitoso. Às vezes sentia que estava até querendo defendê-la, fazê-la se sentir mais à vontade... mas podia estar imaginando coisas.

Ela queria demonstrar algo também, um retorno... mas não sabia como sair do papel de professora.




~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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