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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A Vida de Ego


     O ego acordou bem cedo naquele dia, era uma manha de quarta-feira, e ego já estava cansado de trabalhar.
     O ego acordou quatro e trinta da manhã, pensando:

     - Puts, nunca consigo uma boa noite de sono, esse trabalho está me deixando maluco. Está consumindo minha energia e me dando preocupação.
     - Quando chego em casa, estou tão turbinado com tanta repressão interna, tanta força que tenho que fazer, tanta luta contra a minha vontade, que não consigo descansar. Eu sento, mas toda aquela energia reprimida começa a borbulhar dentro de mim. Talvez se eu tivesse um tempo, talvez uma corrida, qualquer coisa, quem sabe, eu poderia liberá-la... Mas não tenho tempo. Está muito corrido, sempre tenho algo a fazer.

     Então o ego foi tomar banho. Durante o banho, ele pensava o que ia comer. Ele estava sem fome, mas precisava tomar café. Aprendeu que, se não comer, não aguenta o dia. Então ele tinha que comer. Porque aprendeu que comida é sua única forte de energia. Aprendeu que balde vazio não fica em pé.
     Então o ego terminou o banho, enrolou a toalha na cintura e olhou para o espelho, se achando feio, e foi para a cozinha à procura de comida. 
     Enquanto ia do banheiro para a cozinha, um passarinho pousou na janela de sua casa e piou. Era um belo pio... Mas o ego não ouviu, ele estava pensando em que roupa iria usar.
     Abriu a geladeira, mas não queria comer. Mas o ego pensou que deveria comer sim, ele precisava forçar comida, porque balde vazio não aguenta o vento e cai deitado.
     Sentiu então vontade de comer um doce. Mas o ego sabia que não fazia bem para ele, ele precisava emagrecer... Então o ego pegou um pão light com atum, que ele não gostava, e começou a forçá-lo na boca. Sentindo desprazer e imaginando como seria se fosse o doce.

     Enquanto comia, o sol entrou pelas frestas da janela, iluminando o chão, dando um contraste muito bonito com o tapete de pele da sala. Mas o ego não viu, ele estava pensando na roupa.
     A preta ou a laranja? Ele decidiu pela preta. Mas ego lembrou que seus pais sempre diziam que ele não ficava bem de preto, ficava muito obscuro. Então ego optou pela laranja. Mesmo não gostando, ego sabia que seus pais sabiam o que era bom para ele, eles gostavam muito de ego.
     Então ego se vestiu e escovou os dentes, novamente se achando feio ao olhar no espelho, e pensando no péssimo trânsito que teria que enfrentar agora.

     Quando ego estava passando pelo estacionamento, a árvore de sua casa tinha florescido. Eram lindas flores de pétalas rosas, amarelando no centro, com uns fiapinhos bem dourados no meio. Era de tirar o fôlego, olhar para aquela árvore toda florida tocava o coração.
     Mas ego não viu, o trânsito não saía de sua cabeça. Ele imaginava que teria um péssimo dia.


     Durante o trânsito, ego estava se irritando.
     As pessoas não tinham respeito. Paravam em sua frente, entravam sem dar seta... Eram todos loucos! Ego não conseguia aceitar, ficava revoltado. Que péssima cidade, sem estrutura... Ninguém pensa em ninguém. Ego estava indignado.
     Ego começou a imaginar que isso tudo um dia ia acabar. Começou a sonhar:

     - Um dia eu vou estar na minha casa de praia, com meus filhos, e vai ser gostoso. Vou descansar. Quem sabe eu não ganhe na loteria? Vou poder comprar tudo o que sempre quis. Uma casa grande e um bom carro... Vou também poder ajudar na reforma da casa de meus pais, pagar uma boa faculdade pra meu filho. E claro, vou doar uma parte, porque sou uma boa pessoa. Faço o bem....

     Ego estava adorando seu sonho.
     Enquanto ego sonhava, não reparou que havia um grupinho, saindo de uma van escolar em direção ao colégio. Haviam lindas crianças, muito bonitas mesmo, sorrindo. Deviam estar entrando no colégio agora. Havia uma moça pegando eles. Deviam ter em torno de quatro anos. Era lindo de se ver, toda aquela inocência... Tocava o coração. Fazia o observador enxergar e sentir sua própria criança interior, sua própria inocência.
     Mas ego não viu... A casa de praia parecia um bom lugar para se estar agora.

     Logo que ego chegou no trabalho, seu chefe o chamou. Ego percebeu, pelo tom da voz do chefe, que seu chefe não estava com um bom humor.

     - Venha cá - disse o chefe de ego, parecendo nervoso. - Quanto vezes eu tenho que dizer: a pilha de folhas vermelhas fica sobre a pilha de folhas amarelas. Você sempre coloca errado, parece que não pensa!

     Ego se sentiu mal com a crítica, e isso fez ele sentir raiva. Ego não gostava de ser maltratado. Mas ego sabia que era seu chefe e não poderia responder. Então ego vestiu uma máscara e fingiu desculpas:
     - Desculpe, meu chefe, eu deveria ter me lembrado. Prometo acertar da próxima vez.

     Isso fez mal a ele. Ego estava se machucando.
     Sempre que ego tinha que fingir ser outra coisa, ele se sentia ferido. Sentia até um certo choro. Mas ego era um homem, não podia chorar. O que que iam pensar de ego? Que ego era fraco? Jamais! Ego era orgulhoso, ele era forte! Então ele reprimia o choro.
     Para piorar, o chefe de ego disse que tinha um trabalho para ele. Ego já estava cheio de coisa para fazer e seu chefe vinha com mais trabalho? Ego se irritou, de novo. Sentiu vontade de responder, matar seu chefe!
     Mas ego não podia fazer isso, não podia responder, e seu chefe não podia nem ver que ego estava com raiva. Ego reprimiu a raiva, e, tentando ser gentil, disse:
     - Mas chefe, eu já estou cheio de trabalho.
     O chefe de ego não gostou da resposta.
     - Eu não perguntei se você tinha trabalho ou não - disse o chefe de ego de forma muito autoritária. - Eu preciso disso para ontem, e você é o único que faz isso direito aqui. Você quer esse emprego ou não?
     Ego se sentiu triste. Ele dependia do emprego, aquele era seu sustento. Ego então não fez mais nada; só pegou a papelada na mão estendida do chefe, baixou a cabeça, e saiu.

     Quando ego passou pelo corredor do serviço, em uma das salas, ele ouviu um som, uma música que ele adorava. Era linda, uma bela balada. Ego sentiu um toque bom no peito, uma boa sensação... Mas ego não tinha tempo para isso, era perda de tempo. Então continuou em frente e foi para sua sala, ignorando aquela sensação.

     Durante o dia, ego se sentia bastante cansado. Não dormira bem...
     Mas ego não podia descansar, quem sabe no final de semana? Agora ele tinha muito trabalho para fazer. Então ego se torturava, mas continuava em pé, continuava trabalhando.

     Ego passou o resto da semana tendo dias muito parecidos. Continuou com aquele trabalho, um pouco trabalhoso, que seu chefe passou para ele, e, o que ele mais odiava, aquele péssimo trânsito todo dia.
     Ego passava por algumas ruas até bonitas. Era primavera e tinha florescido bastante, era um pouco anormal. Nunca tinha dado tantas flores... Mas ego não as via, o transito sempre o consumia, consumia sua atenção.

     Finalmente chegou o final de semana! Era sábado.
     Ego dormiu até mais tarde, estava bastante cansado da semana.
     Então ego levantou e pensou na sua cervejinha... Ele gostava muito de uma cerveja e, durante a semana, não podia tomá-la. Mas então ego lembrou do chuveiro que tinha quebrado durante a semana e ele tinha que concertar. Ego achou aquilo decepcionante. Mas ele tinha que concertar o chuveiro, se não ia ficar pensando nisso o tempo todo.
     Então ego saiu e foi atrás de concertar o chuveiro. Pegou um pouco de trânsito no caminho de novo, sábado à tarde sempre era um pouco assim.
     Enquanto ia atrás das peças, ego continuava pensando na cerveja.
     Comprou umas na rua e à noite tomou. Relaxou um pouco, mas logo voltou a pensar no trabalho, e surgiram muitas preocupações. Será que ele ia dar conta daquele trabalho? Será que o chefe iria aprovar? Talvez ele precisasse fazer assim, talvez assado... Qual seria a melhor forma?
     Ego irritou-se consigo, ele não tinha que pensar no trabalho agora. Ora bolas, era final de semana, ele tinha é que aproveitar. Mas ego não conseguia parar de pensar no trabalho, ele dependia daquilo para sobreviver.
     Sem o trabalho, o que ego seria? Nem sua família iria gostar dele, ele seria um inútil. Um vagabundo. Seu trabalho o tornava respeitoso...

     E assim o ego seguia...
     No fundinho, ele acreditava que um dia tudo isso ia melhorar. Isso o dava forças para continuar sempre vivo e lutando consigo.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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