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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O Louco de Neandertal



~*~

     Neandertal era uma cidade solitária, onde lá habitava um louco. Ele era o louco mais estranho do mundo.

     Ele não tinha problema mentais, tampouco fazia coisas loucas. Não tinha acessos de raiva e também não se descontrolava. Ele era louco porque era sensível. Ele tinha uma sensibilidade extrema, que, aos olhos do povo da terra, era loucura. E era mesmo.

     Em Neandertal, ele vivia bem. Era uma cidade construída por ele, rica em muitos sentidos, porém, solitária. Só cabia espaço para ele naquelas terras.

     Ele construiu Neandertal para sua própria segurança e proteção. Para a proteção de sua sensibilidade, não compreendida pelos habitantes da terra, mas que ele a tratava como se fosse o seu bem mais precioso. Ele a tratava como se fosse sua própria vida. Isso significa que ele construiu Neandertal, e vivia lá, apenas para proteger o seu bem mais precioso: sua sensibilidade frágil e aflorada.

     O Louco de Neandertal sabia que havia uma cura para sua loucura. E a cura para sua loucura era um canal onde essa sensibilidade pudesse ser dada vazão e entrar em fluxo; um canal onde ela pudesse ser compartilhada de forma segura. Sua cura era poder compartilhar sua sensibilidade. Dar vazão a ela.

     Neandertal era apenas sua cidade refúgio, construída como um impulso próprio de sobrevivência. Sempre que o Louco de Neandertal encontrava uma porta-canal, sua sensibilidade entrava em curso, tirando ele temporariamente de Neandertal. Mas não demorava muito e a porta encontrava uma barreira e era fechada. Sua sensibilidade batia então na barreira, se chocando contra a porta fechada, e isso machucava tanto ela quanto o Louco. Foi nessas idas e vindas da dor, que o Louco construiu Neandertal.

     Sempre que a dor angustiante de ter sua sensibilidade rejeitada e ferida batia às portas, o louco corria para Neandertal e se sentia seguro lá. Neandertal preservava o seu lado mais belo; seu lado feminino e sensível. Havia amor em Neandertal, amor e abrigo, pois fora construída desse mesmo material. Porém, só podia entrar ele e a natureza lá. Nenhum ser humano. E isso era quase um castigo para ele.

     O Louco não queria depender de Neandertal. Ele sabia que a saída de Neandertal, ou até conseguir dividir Neandertal com alguém - deixando assim de ser uma terra solitária -, era como num conto de fadas: somente o amor mais puro e verdadeiro de uma mulher poderia ser o canal seguro e tirá-lo, ou abrir as portas, de Neandertal.

     Até esse dia, Neandertal seria sempre seu refúgio. Uma terra calma; viva em natureza, em compaixão, em entendimento, em amor, em benevolência e em paz. No entanto, solitária.

~*~



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A arte de iluminar


     Iluminação. Ilumina-ação. Ação que ilumina, a arte de iluminar.
     Iluminação não é estática, não é uma pausa, é uma ação. Iluminação não é passado, tão pouco futuro, iluminação é um verbo.
     Iluminação não é pacificação; é mais como guerra, revolução.
     Iluminação não é permanecer calado, sendo o observado; é abrir a boca, fazer o estrago.

     A onda é como um presente, uma banca de diversão. Acalma os surfistas, desejosos, e amacia o corpo dos banhistas.
     A onda é um agrado. Mas o tsunami, o tsunami não... o tsunami é a onda mestra, o tsunami é iluminado.
     Um tsunami não é agrado, um tsunami é avassalador. Chega sem aviso, surpreendendo com perigo. Ninguém fica no caminho, não há como escapar. A iluminação é uma revolta, a revolta das ondas do mar.

     O iluminado, não faz carinho. Ele desperta, remove o ninho.
     O iluminado, é perigoso. Quando ele chega, acaba o gozo.
     O iluminado, é afiado. Nada se esconde, está armado.

     Deve-se ter um grande alerta quando o iluminado se revela. A paz acabou, é o fim do mundo.
     Aquele que construiu na mentira, começa a perder a cabeça, o iluminado o tira da mesa.
     O iluminado atravessa as paredes, enxerga no escuro, destrói o muro e enxerga o impuro.

     O iluminado é o maior perigo que já existiu.

     Quando o iluminado chega:
     O rei, perde o cargo e se desespera. O professor, perde o emprego e entra em alerta. O policial, perde a autoridade e se entrega. O ladrão, é solto e se converte. O psiquiatra, perde a utilidade. O psicólogo, carece de sentido. O iluminado não é abrigo, o iluminado é o mundo perdido.
     O filho, se torna o pai. O pai, perde seu filho. A mãe não tem mais poder de fala; o filho se torna um rebelde, ele sabe do que fala. 
     A guerra começa no lar. O filho alerta a família. A família é o erro, construída na mentira. O pai teme que a esposa escute o filho, porque se escutar, a esposa ganha liberdade e o pai perde a autoridade. 
     O irmão que entendeu, da família também se desprendeu. O irmão virou o pai. O pai perde a cabeça; perdeu os filhos, esposa... sobrou os bens, vazio, sem ninguém. O pai sofre porque não escuta; perde de ganhar e a ganha de perder.

     Quem resiste, sofre a peste.

     Num mundo de erro, o acerto é loucura.
     No reino do problema, a solução é o perigo.
     O acerto, inutiliza o erro.
     A solução, expõe o problema.

     Se o erro é uma centena e a solução é uma só; a centena se desespera, a solução é o fim dela.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

O Casal de Loucos




    Ele, biruta. Ela, maluca. Por onde eles iam, as pessoas achavam eles estranhos.
     Eles falavam diferente, não tinham tanta coerência quanto as pessoas pareciam ter. Eles agiam diferente, tomavam atitudes que não eram normais as pessoas tomarem. Enfim, as pessoas achavam que eles eram doidos.
     Eram muito parecidos em muitos aspectos, porém, muito diferentes também. Moravam distantes e se falavam muito pouco.

     Por alguma razão que talvez só o destino saiba, ainda adolescentes, eles se encontraram e, numa mistura de acaso e um pouco de sorte, talvez, se apaixonaram.
     Ele falava coisas muito malucas para ela, e ela achava aquilo um pouco fora do comum. Ninguém falava daquele jeito, apenas ele. Talvez isso tenha despertado algum interesse nela, porque, no fundo, apesar de ainda não saber, ela também era uma maluca.
     Apesar da maluquice das coisas que ele falava, ela realmente sentia que ele dizia coisas verdadeiras. Era estranho, mas tudo que ele falava se encaixava com as coisas que ela ouvia, percebia, e que sentia lá no fundo. E o mais estranho de tudo, era que o universo que a circundava, parecia que falava dele. E ele, percebendo isso também, em sua maluquice, acreditava que era assim, porque tinha mesmo que ser assim. Como se fosse coisa de destino.

     Depois desse breve encontro, eles se separam. Ele, doido por si só, permaneceu doido. Ela, no entanto, nunca fora tão doida como antes de encontrar com ele. Talvez ela já fosse doida lá no fundo, mas ela nunca tivera percebido isso.
     O encontro deles foi como um divisor de águas; antes, ela era uma, depois, se tornou outra. Aquilo foi meio que um choque para ela.
     Ela, que nunca houvera visto a maluquice que existia nela, enlouqueceu de supetão. Foi difícil para ela, porque as pessoas à sua volta não estavam acostumadas com esse tipo de loucura. Ela foi muito julgada, mal interpretada, e, dócil e sensível que é, não resistiu... reprimiu sua loucura.
     De certa forma, isso sempre machucava ela, ela gostava de ser doida. Mas a única forma de não ser excluída do mundo à sua volta, era escondendo sua loucura.

     Ele, durante esse longo tempo separados, foi ficando mais louco ainda. A sua loucura nasceu com ele mesmo, e ele já tivera enfrentado todo o mundo à sua volta por causa dela. Ele já tinha feito uma decisão, uma decisão que percebeu pela própria experiência que era o melhor para ele. Ele decidiu: "eu quero ser o louco, independente de como seja. É isso que me faz feliz e me faz ter sanidade."

     Alguns anos depois, novamente, eles se encontraram. O estranho de tudo era que ele morava na terra natal dela, e ela morava na terra natal dele. Ela passava as férias na terra natal dele, e ele passava as férias na terra natal dela. Mas, dessa vez, ela houvera voltado para sua terra de origem, o lugar onde o rapaz fazia sua morada. E foi aí que eles se encontraram.
     Ela tomou um susto quando encontrou com ele. Ele estava estranho, diferente. Aquela loucura tinha tomado conta. Se ele antes falava coisas estranhas, agora o que ele falava era completamente louco. Se ele era um maluco antes, agora ele era um completo biruta. Ela nem reconhecia mais ele direito. Ele não era mais o mesmo.
     Novamente, o encontro deles foi chocante. Tremeu com ela, abalou sua estrutura. Aconteceu muito parecido com o passado, mas agora era um pouco mais forte, mais louco, mais profundo.
     As coisas que ele dizia, novamente faziam muito sentido para ela, apesar de serem completamente loucura. E, sem perceber, aquilo foi mexendo com ela. Novamente aconteceu, as águas se dividiram. Antes, ela era uma, depois desse novo encontro, ela se tornou outra.
     Ela estava ficando confusa com o que estava acontecendo. Não sabia mais o que era o certo, nem o errado. Não sabia quem procurar, ou como agir. Não sabia se devia conversar, ou permanecer calada. Não sabia se devia ficar só, ou procurar alguém. Estava perdida.
     O pior de tudo isso, é que o rapaz as vezes enlouquecia. Do nada, ele dizia coisas que não tinha sentido. Do nada, ele apareceu, e disse a ela: - saia daqui, não quero você perto de mim. Você está me perturbando.
     Ela não sabia mais o que fazer. Mas o rapaz, mesmo distante, queria que ela apenas entendesse uma coisa:


O primeiro passo para se encontrar é a coragem de estar perdido.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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A Noite



A noite
Vem como arma
De ponta afiada
Cortando a alma

Escurece a visão
Cegando o caminho
Machuca o peito
Parecendo espinho

Mas a noite passa
E com ela o dia vem
Com a mesma intensidade
Do nosso mergulho de coragem

Quando é noite,
A gente canta
A gente se encoraja
A permanecer na estrada

Tentando amenizar
A dor de estar perdido
Tentando se encontrar
Olhando pro umbigo

Quando é noite:
Uns correm
Esses escapam
Uns encaram
Esses descobrem.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sábado, 22 de fevereiro de 2014

Conquistando a Iluminação


     O passo básico e, sem ele, não há iluminação e nem possibilidade de haver ela, é uma abertura. O essencial é conseguir essa abertura. Com essa abertura, o processo pode acontecer; com ela, o processo se torna uma possibilidade. Vou explicar mais à frente.
     Primeiramente, de começo, é muito difícil conseguir uma abertura com os seres humanos. Há muito passado envolvido nas relações humanas, e, assim que um humano se aproxima de um outro, é normal o ser se fechar.
     Não é preciso de um iluminado para se iluminar, lembre-se sempre que alguém teve que se iluminar primeiro. Então, ele conseguiu sozinho, porque antes dele não havia ninguém. Mas a presença de um iluminado pode sim, e muito!, ajudar.
     Só que se você se aproximar de um iluminado, sem essa abertura que explicarei, você perderá o ponto e nem perceberá a luz dele. Um buda estará sentado ao seu lado e você não o estará percebendo. Jesus estará sentado ao seu lado e você não o estará percebendo. Ele estará acessível, mas você estará fechado; não há como a luz dele te tocar. Não há permissão para isso. Você poderá até se sentir incomodado, porque a presença de um iluminado ficará cutucando sua porta fechada; mas você não entenderá o que está acontecendo. Sentirá inclusive que há um problema ali e vai querer se retirar.


     Entenda isso: a luz não pode entrar num quarto enquanto a cortina está fechada. Ela ficará tocando na cortina, mas não entrará. Quando a cortina é aberta, ela entra de vez.


~ * ~

     A iluminação começa com uma abertura. Dessa abertura, e num esforço de mantê-la constante, em tempo integral, a presença vem, a luz vem.
     Se você conseguir um ponto de abertura, a presença de um iluminado poderá entrar por ela, ser sentida por você, e isso se tornar um impulso para reviver a sua própria.

     Entenda isso: somos como madeira. Todos nós. Somos como madeira trancada e fechada dentro de uma lareira. A iluminação põe fogo na madeira dessa lareira, quando ela é aberta, e mantém o fogo aceso. Mas, para isso, é preciso abrir a lareira, inicialmente fechada, e colocar fogo até ela acender.

~ * ~

     O iluminado está em chamas.
     Se você abrir sua lareira perto dele, expondo a madeira que está lá dentro, o fogo dele toca a madeira e inicia uma combustão. O esforço que seria necessário para essa combustão, depois que a lareira foi aberta, não será preciso ser feito. Na presença do iluminado, no fogo dele, acontece.
     Tudo que é necessário é uma abertura.
     Como é mais difícil consegui-la de começo com os seres humanos, tente com a natureza. Observe as flores. Escute e observe os pássaros. Sente ao lado de árvores, de preferência aquelas idosas, de troncos grossos - pois têm uma presença maior - e tente senti-las. Tente estar aberto a elas. É mais fácil conseguir o ponto de abertura com a natureza.




     Animais também servem. Mas eu acho que com as árvores anciãs é ainda mais fácil, pois não há nenhum condicionamento. Elas ficam ali, quietinhas, emitindo uma presença. Veja, sinta. Não faça nada, apenas permaneça aberto a qualquer sensação. Não demorará muito, você compreenderá, você pegará o ponto de abertura. Tente algumas vezes, talvez não pegue de primeira. Continue tentando, é assim que é.
     Depois que conseguir o ponto de abertura, será moleza. O iluminado, a presença do iluminado, será muito útil. Porque ela é a presença mais forte da natureza. É o fogo incandescente.
     Com o ponto de abertura, bastará se aproximar de um iluminado, em silêncio, manter o ponto aberto e... Fushhh! - A madeira começará a queimar.


Ps: a presença do iluminado não é necessária, ela apenas ajuda. Se você pegar o ponto de abertura, junto com um pouquinho de esforço, contínuo, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto; você consegue tocar fogo na madeira sozinho. O iluminado é fogo, ele pode cortar a etapa do esforço. Basta se aproximar dele e permanecer com o ponto de abertura.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A diferença de um iluminado para um desejoso


     Aquele que está sempre sendo movido pelo desejo, mal vive de fato a vida. A vida é um fluxo, e só os iluminados vivem este fluxo.
     A vida é como a água corrente de um rio. Se você pegar uma faixa imóvel de um rio, a água estará passando por está faixa constantemente, sempre trocando de águas. Nunca é a mesma.
     Um iluminado - aquele que vive em união com o movimento da vida - é como esta faixa imóvel de um rio. A água que está passando por ele agora, já está indo, deixando uma nova. Assim segue durante todo o dia, e, naquela faixa que ele é, muitas águas passarão em um único dia, muitas experiências serão vividas neste mesmo dia.
     O desejoso, vive a vida de forma diferente. Ele corta a corrente, ele coloca uma represa. A água para, deixa de fluir. 
     Ele deseja algo, e esse desejo entra em sua energia, paralisando ela, segurando ela em um único ponto estável - no seu desejo - e prendendo o ser dele ali.
     Por exemplo: talvez você já tenha saído para um evento, ou um show, onde tenha se perdido de alguém. Neste momento, você deseja encontrar a pessoa e começa a procurá-la. É possível que você passe o show inteiro, horas e horas, procurando aquela mesma pessoa, sem encontrá-la.
     Todo aquele tempo, sua energia esteve paralisada; focada em um único ponto, em um único objetivo. Você estava perdendo a vida que estava passando à sua volta. É como se a água corrente do rio estivesse sido represada, e, aquela faixa imóvel do rio que é você, permanecesse sempre com a mesma água. Sempre com a mesma experiência.
     Por isso o iluminado, diferente do desejoso, é uma pessoa tão inteligente, confiante, contente, experiente, radiante e cheia de vida. Ele vive o fluxo. É muita água que passa por ele em um período de uma única hora. Enquanto toda essa água passa por um iluminado, o desejoso, esteve preso sempre à mesma água durante o mesmo período.
     Enfim, em um dia, um iluminado vive a proporção de 100, e o desejoso, vive a proporção de 1. Imagine isso em anos, quanto que viveu cada um?



Ps: o iluminado também deseja. Mas seu desejo também é um fluxo, não é estático. Ele não se agarra a ele.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Iluminado Exigente


     Havia um rapaz na cidade, de meia idade, que as pessoas contavam que era um iluminado e que ele não aceitava qualquer tipo de discípulo. Ele tinha suas próprias condições.
     Para ele, não importava se as pessoas queriam ser iluminadas, se tinham disciplina, se tinham potencial... nada disso. Essas coisas não eram critérios para ele.
     Ele dizia que só aceitava aqueles que teriam a coragem de abrir a boca e falar da iluminação, mesmo sendo julgado louco. Se a pessoa queria a iluminação, para se manter em silêncio; ele dizia que era um inútil e que, mesmo iluminado, iria enlouquecer. Ele rejeitava.
     Ele não tinha discípulos. Até hoje não houvera chegado ninguém a ele com tal coragem. Todos tinham medo de falar e ser julgado louco, então ele recusava todo mundo e continuava esperando.
     Um rapaz que o foi procurar para ser seu discípulo, disse que sempre buscou a iluminação, e a desejava, mas que não tinha a coragem de falar dela.
     O mestre o recusou.
     O rapaz questionou o porque, alegando que seria melhor pelo menos o mestre ter ele como discípulo, do que não ter ninguém.
     O mestre retrucou:

     - Negativo. Vá embora, você não presta. A iluminação não é para você. Você vai se iluminar, depois vai ficar mais louco ainda e vai querer se matar.

     O rapaz ficou completamente confuso.

     - O que você quer dizer? - Perguntou o rapaz.
     - Quando você atinge a iluminação - disse o mestre -, você deixa de ser um ser fechado e se torna um ser aberto. Antes dela, você sente apenas você e uma pequena parte do mundo que entra por osmose. Depois dela, você estará aberto. Você vai sentir o mundo inteiro. Você vai ser o mundo inteiro.

     - E daí? - Questionou o rapaz. - Isso parece bom... sentir o mundo.
     - Sim, é bom mesmo - afirmou o mestre -, se você tiver a coragem de falar dele exatamente do jeito que ele é. Porque você vai deixar de ser você e se tornar o que os outros são. Se você não tiver coragem de falar da iluminação, e de apontar o caminho para os outros, irá se sentir pior do que antes. Porque, antes, você era preso só a si mesmo e já sofria. Agora que se libertou de si, virou um ser aberto. Então agora você é preso ao universo inteiro, porque você sente o sofrimento dele, porque agora você é ele.
     - Se não falar - continuou o mestre -, será um louco e perderá a cabeça. Vá embora, é melhor para você. Ah não ser que você queira se iluminar e viver isolado do resto do mundo, numa floresta, talvez. Mas aí você não presta mesmo, pois quando se tornar verdadeiramente útil, você desaparecerá.
     - Saía daqui - ordenou o mestre. - Vá embora.



A iluminação é um rompimento, sucedido por uma abertura.
Assim como um espaço, sucedido por um preenchimento.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sábado, 15 de fevereiro de 2014

A Vida de Ego


     Ego desejava salvar o mundo, fazer alguma coisa pela humanidade.
     Ele tinha acordado tarde, estava desempregado. Mas ele confiava em Deus, acreditava nele. Estar desempregado era o seu destino.
     Ego vivia matutando como ele ia salvar a humanidade. Ele tinha lido bastante, aprendido muita coisa sobre o ego. E ego agora assumiu uma missão: ele ia passar a mensagem e falar sobre o ego. Ego disse: "é meu destino!"

     Ego saía para dar um passeio, saía com a mão no queixo, pensando e pensando o que ele iria fazer, como iria passar a mensagem...
     Será que ele faria um vídeo? Será que ele escreveria?
     Enquanto passava pela sua rua, os passarinhos das árvores saltitavam em voo e passavam por cima dele. Era bonito. Era engraçadinho. Bem fofo. Parecia que os pássaros estavam querendo chamar sua atenção.
     Mas ego não percebia, ele estava ocupado. E não era uma ocupação qualquer, ele estava ocupado com o destino da humanidade. Ego ia salvar ela de algum jeito.

     Ego, todos os dias, rezava e pedia a Deus que guiasse seus passos. E, depois de rezar, ego voltava a matutar como iria salvar a humanidade.

     Um dia, ego saiu para uma volta na pracinha.
     Antes dele sair, um rapaz tinha passado naquela pracinha, com um pichador. Ele pichou no muro da pracinha: 

     "Pare, escute, fique atento e descanse. Eu não posso chegar a você enquanto você não me deixa agir."

     Agora que ego tinha chegado na pracinha, o pichador já tinha ido embora.
     Ego começou a dar voltas pela pracinha, pensativo. Ele estava muito preocupado, ele sabia que todo o planeta estava perdido. Ele pensava nos seus pais, nos seus colegas, no pessoal da fazenda... Ego estava preocupado com o mundo.
     Ego deu cinco voltas pela pracinha, e toda a vez passava em frente àquele muro. Mas ego estava ocupado, ele não olhava para o muro.

     Ego estava dando a sexta volta, foi quando, logo que estava ao lado do muro, um garoto pequeno passou e pisou no pé dele. Ele sentiu dor.

     - Olhe para a frente! Seu distraído! Preste atenção! - Disse o garotinho.

     Ego olhou para a dor e para o garoto com raiva: Que insulto! O garoto que pisou no meu pé e ainda vem me pedir para ter atenção? Quem ele acha que é?

     - Saía de minha frente seu garoto displicente - disse o ego irritado. - Quem você pensa que é para me insultar?
     
     O garotinho pisou no pé de ego de novo, com mais força.

     - Olhe para a frente, tenha atenção! - Disse o garoto.

     Ego ficou furioso. Sentiu vontade de matar o garoto.

     - Saía daqui seu garoto infantil. Olhe bem como você fala comigo! - Respondeu o ego.

     O garoto sentiu a raiva de ego e correu.

     Ego então seguiu em frente e foi para casa, não viu o muro.
     Logo que o pichador saiu da praça, ele passou pela rua de ego e pichou, bem no chão:

     "Olhe para frente, sou eu que estou falando com você. Me veja."

     E então logo que ego passou pela rua, ele passou cabisbaixo. Chateado com o que o garoto tinha falado. Ele estava confuso. Sentia raiva, sentia desgosto... Ele sabia que era esse o mal da humanidade que ele tinha que curar, e ele o estava sentindo agora.
     Mas então ego começou a raciocinar: eu não estava assim. É, eu não estava. É culpa do garoto. Foi ele. Ele é que me fez isso. Agora eu entendo. Isso vem dele.

     Enquanto ego tentava se defender, ele passou, olhando para o chão, em frente à escritura do pichador, mas não a viu. Seguiu para casa.
     Agora que ele tinha compreendido que o garoto era o culpado, voltara a pensar em sua missão.

     E assim ego seguia. Ele tinha uma nobre missão, isso o dava forças para continuar vivo e em pé.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A Vida de Ego


     O ego acordou bem cedo naquele dia, era uma manha de quarta-feira, e ego já estava cansado de trabalhar.
     O ego acordou quatro e trinta da manhã, pensando:

     - Puts, nunca consigo uma boa noite de sono, esse trabalho está me deixando maluco. Está consumindo minha energia e me dando preocupação.
     - Quando chego em casa, estou tão turbinado com tanta repressão interna, tanta força que tenho que fazer, tanta luta contra a minha vontade, que não consigo descansar. Eu sento, mas toda aquela energia reprimida começa a borbulhar dentro de mim. Talvez se eu tivesse um tempo, talvez uma corrida, qualquer coisa, quem sabe, eu poderia liberá-la... Mas não tenho tempo. Está muito corrido, sempre tenho algo a fazer.

     Então o ego foi tomar banho. Durante o banho, ele pensava o que ia comer. Ele estava sem fome, mas precisava tomar café. Aprendeu que, se não comer, não aguenta o dia. Então ele tinha que comer. Porque aprendeu que comida é sua única forte de energia. Aprendeu que balde vazio não fica em pé.
     Então o ego terminou o banho, enrolou a toalha na cintura e olhou para o espelho, se achando feio, e foi para a cozinha à procura de comida. 
     Enquanto ia do banheiro para a cozinha, um passarinho pousou na janela de sua casa e piou. Era um belo pio... Mas o ego não ouviu, ele estava pensando em que roupa iria usar.
     Abriu a geladeira, mas não queria comer. Mas o ego pensou que deveria comer sim, ele precisava forçar comida, porque balde vazio não aguenta o vento e cai deitado.
     Sentiu então vontade de comer um doce. Mas o ego sabia que não fazia bem para ele, ele precisava emagrecer... Então o ego pegou um pão light com atum, que ele não gostava, e começou a forçá-lo na boca. Sentindo desprazer e imaginando como seria se fosse o doce.

     Enquanto comia, o sol entrou pelas frestas da janela, iluminando o chão, dando um contraste muito bonito com o tapete de pele da sala. Mas o ego não viu, ele estava pensando na roupa.
     A preta ou a laranja? Ele decidiu pela preta. Mas ego lembrou que seus pais sempre diziam que ele não ficava bem de preto, ficava muito obscuro. Então ego optou pela laranja. Mesmo não gostando, ego sabia que seus pais sabiam o que era bom para ele, eles gostavam muito de ego.
     Então ego se vestiu e escovou os dentes, novamente se achando feio ao olhar no espelho, e pensando no péssimo trânsito que teria que enfrentar agora.

     Quando ego estava passando pelo estacionamento, a árvore de sua casa tinha florescido. Eram lindas flores de pétalas rosas, amarelando no centro, com uns fiapinhos bem dourados no meio. Era de tirar o fôlego, olhar para aquela árvore toda florida tocava o coração.
     Mas ego não viu, o trânsito não saía de sua cabeça. Ele imaginava que teria um péssimo dia.


     Durante o trânsito, ego estava se irritando.
     As pessoas não tinham respeito. Paravam em sua frente, entravam sem dar seta... Eram todos loucos! Ego não conseguia aceitar, ficava revoltado. Que péssima cidade, sem estrutura... Ninguém pensa em ninguém. Ego estava indignado.
     Ego começou a imaginar que isso tudo um dia ia acabar. Começou a sonhar:

     - Um dia eu vou estar na minha casa de praia, com meus filhos, e vai ser gostoso. Vou descansar. Quem sabe eu não ganhe na loteria? Vou poder comprar tudo o que sempre quis. Uma casa grande e um bom carro... Vou também poder ajudar na reforma da casa de meus pais, pagar uma boa faculdade pra meu filho. E claro, vou doar uma parte, porque sou uma boa pessoa. Faço o bem....

     Ego estava adorando seu sonho.
     Enquanto ego sonhava, não reparou que havia um grupinho, saindo de uma van escolar em direção ao colégio. Haviam lindas crianças, muito bonitas mesmo, sorrindo. Deviam estar entrando no colégio agora. Havia uma moça pegando eles. Deviam ter em torno de quatro anos. Era lindo de se ver, toda aquela inocência... Tocava o coração. Fazia o observador enxergar e sentir sua própria criança interior, sua própria inocência.
     Mas ego não viu... A casa de praia parecia um bom lugar para se estar agora.

     Logo que ego chegou no trabalho, seu chefe o chamou. Ego percebeu, pelo tom da voz do chefe, que seu chefe não estava com um bom humor.

     - Venha cá - disse o chefe de ego, parecendo nervoso. - Quanto vezes eu tenho que dizer: a pilha de folhas vermelhas fica sobre a pilha de folhas amarelas. Você sempre coloca errado, parece que não pensa!

     Ego se sentiu mal com a crítica, e isso fez ele sentir raiva. Ego não gostava de ser maltratado. Mas ego sabia que era seu chefe e não poderia responder. Então ego vestiu uma máscara e fingiu desculpas:
     - Desculpe, meu chefe, eu deveria ter me lembrado. Prometo acertar da próxima vez.

     Isso fez mal a ele. Ego estava se machucando.
     Sempre que ego tinha que fingir ser outra coisa, ele se sentia ferido. Sentia até um certo choro. Mas ego era um homem, não podia chorar. O que que iam pensar de ego? Que ego era fraco? Jamais! Ego era orgulhoso, ele era forte! Então ele reprimia o choro.
     Para piorar, o chefe de ego disse que tinha um trabalho para ele. Ego já estava cheio de coisa para fazer e seu chefe vinha com mais trabalho? Ego se irritou, de novo. Sentiu vontade de responder, matar seu chefe!
     Mas ego não podia fazer isso, não podia responder, e seu chefe não podia nem ver que ego estava com raiva. Ego reprimiu a raiva, e, tentando ser gentil, disse:
     - Mas chefe, eu já estou cheio de trabalho.
     O chefe de ego não gostou da resposta.
     - Eu não perguntei se você tinha trabalho ou não - disse o chefe de ego de forma muito autoritária. - Eu preciso disso para ontem, e você é o único que faz isso direito aqui. Você quer esse emprego ou não?
     Ego se sentiu triste. Ele dependia do emprego, aquele era seu sustento. Ego então não fez mais nada; só pegou a papelada na mão estendida do chefe, baixou a cabeça, e saiu.

     Quando ego passou pelo corredor do serviço, em uma das salas, ele ouviu um som, uma música que ele adorava. Era linda, uma bela balada. Ego sentiu um toque bom no peito, uma boa sensação... Mas ego não tinha tempo para isso, era perda de tempo. Então continuou em frente e foi para sua sala, ignorando aquela sensação.

     Durante o dia, ego se sentia bastante cansado. Não dormira bem...
     Mas ego não podia descansar, quem sabe no final de semana? Agora ele tinha muito trabalho para fazer. Então ego se torturava, mas continuava em pé, continuava trabalhando.

     Ego passou o resto da semana tendo dias muito parecidos. Continuou com aquele trabalho, um pouco trabalhoso, que seu chefe passou para ele, e, o que ele mais odiava, aquele péssimo trânsito todo dia.
     Ego passava por algumas ruas até bonitas. Era primavera e tinha florescido bastante, era um pouco anormal. Nunca tinha dado tantas flores... Mas ego não as via, o transito sempre o consumia, consumia sua atenção.

     Finalmente chegou o final de semana! Era sábado.
     Ego dormiu até mais tarde, estava bastante cansado da semana.
     Então ego levantou e pensou na sua cervejinha... Ele gostava muito de uma cerveja e, durante a semana, não podia tomá-la. Mas então ego lembrou do chuveiro que tinha quebrado durante a semana e ele tinha que concertar. Ego achou aquilo decepcionante. Mas ele tinha que concertar o chuveiro, se não ia ficar pensando nisso o tempo todo.
     Então ego saiu e foi atrás de concertar o chuveiro. Pegou um pouco de trânsito no caminho de novo, sábado à tarde sempre era um pouco assim.
     Enquanto ia atrás das peças, ego continuava pensando na cerveja.
     Comprou umas na rua e à noite tomou. Relaxou um pouco, mas logo voltou a pensar no trabalho, e surgiram muitas preocupações. Será que ele ia dar conta daquele trabalho? Será que o chefe iria aprovar? Talvez ele precisasse fazer assim, talvez assado... Qual seria a melhor forma?
     Ego irritou-se consigo, ele não tinha que pensar no trabalho agora. Ora bolas, era final de semana, ele tinha é que aproveitar. Mas ego não conseguia parar de pensar no trabalho, ele dependia daquilo para sobreviver.
     Sem o trabalho, o que ego seria? Nem sua família iria gostar dele, ele seria um inútil. Um vagabundo. Seu trabalho o tornava respeitoso...

     E assim o ego seguia...
     No fundinho, ele acreditava que um dia tudo isso ia melhorar. Isso o dava forças para continuar sempre vivo e lutando consigo.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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domingo, 9 de fevereiro de 2014

Impostor!




Eu vou te pegar!
Vou te pegar!
Impostor seu impostor
Sua hora já chegou!

Destreza de gato
Olho de águia

Veneno de cobra
Garganta de dragão
E fúria de leão

Sou um caçador
E a minha astúcia é a astúcia de um Deus

Não vou te deixar livre
Vou acabar com sua vida
Vou arrancar seu pescoço a fora
Trancar você no inferno.

Você vai ranger os dentes
Vai se tremer de dor
Pois sua hora chegou
Sua vida acabou.

Já sente tremer?
Sim, sou eu!
Eu cheguei,
Sua paz acabou.

Liberte meu filho,
Ou eu mato você.

Te pegarei aonde quer que esteja.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Presente para a vida


/\
~ ~
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~ * ~

Toda flor que nasce
Se torna um presente para a vida
Os pássaros se alegram
Se preenchem com sua alegria

Um perfume se exala da flor
E as abelhas celebram esse amor

O perfume também acalma os humanos
Quando eles compreendem
Que a paz está chegando
É mera questão de tempo
O acordado os está acordando.

~ * ~



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

O Livro dos Segredos




     Ele crescera com um ancião, um velho muito sábio.
     Logo que nascera, fora abandonado pelos pais em uma caixa de papelão logo à porta do velho.
     Um dia, o velho saiu pela rua, encontrou o menino chorando, levou-o para casa e se afeiçoou a ele. O velho então adotou o menino como seu próprio filho. 
     O velho era recluso do mundo. Vivia em sua própria casa, distante de tudo e de todos, vivendo de sua própria plantação e de seus próprios frutos.
     O garoto, desde pequeno, dissera ao velho que não queria ser como ele, que queria ir para o mundo viver suas aventuras.
     O velho, bastante sábio, não interferia no caminho de ninguém. Se ele desejava ir para o mundo, o mundo é o seu lugar.

     Então, o velho colocou ele na escola e depois ele entrou na universidade. O velho era apenas sua casa. O garoto ia, vagava pelo mundo, e quando voltava, o velho estava lá, de braços abertos e sorridente.
     O velho não se importava se o garoto queria ser diferente dele, ele entendia as coisas como são, sabia que cada um tem seu caminho e sua hora para tudo.

     Então o menino terminou sua faculdade e começou a trabalhar.
     O jovem, desde a faculdade e até então, percebeu que ele estava ficando mais estressado à medida que o tempo ia passando.
    Tudo estava tenso; os dias estavam apertados, sufocantes, e ele não conseguia um minuto de pausa, de descanso. Parecia que tudo estava empurrando ele, empurrando sempre. E ele, como se fosse um fruto do destino, estava sofrendo. Era como se ele não tivesse escolha.

     Ele já estava ganhando um bom dinheiro e tinha comprado sua própria casa. Mas não tinha muito tempo para desfrutar de seus bens, a vida era muito corrida. Ele não tinha culpa, ela simplesmente era assim. Não foi escolha dele.
     Sempre que ele tinha um tempo para visitar o velho, ele ia, e, quando chegava na casa do velho, o peso do mundo que o circundava instantaneamente se dissolvia. Ele conseguia descansar.

     O velho parecia estar sempre mais em paz do que das vezes anterior que ele tinha o visitado, parecia que a paz do velho estava sempre crescendo. E essa paz parecia que entrava nele também. Era um estranho contraste. O garoto, que era jovem, ficava cada vez mais tenso; e o velho, que era idoso, ficava a cada dia mais radiante, mais juvenil.
     Ele não conseguia compreender porque o velho era assim. O velho não fazia nada, vivia só, em casa.
     Um dia desses, visitando o velho, ele ficou curioso:

     - Meu velho, porque você está sempre assim? Cada vez mais radiante? A morte está se aproximando, você devia estar se preocupando.
     - Meu anjo do céu - respondeu o velho -, eu já morri a muito tempo. Não tenho mais medo da morte.

     O garoto nunca entendeu o que o velho queria dizer quando dizia isso, mas ele dizia isso desde que ele era um garotinho.
     Ele achava que era alguma forma do velho se contentar com a morte. Mas o velho realmente tinha algo diferente; ele era como um lago calmo, um lago sem peixes, sem ondas. O garoto nunca conhecera ninguém assim, só seu velho.
     O garoto estava tendo uma sensação estranha. Ele sempre soube que seu velho era um homem de paz, mas isso nunca despertou sua atenção como agora. Ele vinha sofrendo. Muita correria, muito peso em cima dele. Aquela paz do velho parecia aconchego, salvação.

     - Meu velho - disse ele -, é possível ser como você? Essa paz...
     - Sim, meu filho - respondeu o velho -, todo mundo pode ser assim. Basta abandonar tudo e abraçar a morte. Ela está a cada dia mais perto, e ela é uma ameaça, porque quando ela vem, quando ela bate à porta, quando ela está chegando perto; tudo acaba, tudo começa a perder sentido. O dinheiro acaba, os bens acabam, o alimento acaba, o relacionamento acaba; tudo acaba. Se abraçarmos ela logo, antes de sua chegada, ela não assustará. Nada mais assustará, porque já estaremos mortos.
     - Velho - disse o jovem -, eu não posso abandonar tudo... É muita coisa. Não da para fazer isso, tenho medo, não da para saber o que vai acontecer.

     O velho ficou pensativo.

     - Tem um outro caminho... - Disse o velho. - Nesse caminho, nada precisa ser abandonado.
     - Ele também me trás essa paz que o senhor transmite?
     - Sim - respondeu o velho. - Essa é a única paz. Você a sente comigo, mas esse caminho pode tornar você um bagageiro dela. Então irá carregá-la como uma bagagem, como uma mochila, por todo lugar aonde for.
     - Eu quero isso - disse o jovem com firmeza. - É tudo o que preciso. O que preciso fazer?
     - Tem um livro, o Livro dos Segredos - contou o velho. - Eu vou te dar ele e você só precisa lê-lo e seguir todas as suas instruções à risca. Se o livro disser: não faça isso - não faça. Se o livro disser: aja assim - você age conforme ele está falando. E assim por diante. Então você continuará no mundo, porém agindo conforme o livro.

     O jovem concordou.
     Ele não podia abandonar tudo, mas podia sim seguir algumas instruções. Se não precisaria abandonar sua vida, tudo bem, era perfeito para ele. Ele continuaria trabalhando, estudando e agindo conforme o livro dissesse. Não parecia tarefa difícil.
     Então o velho deu a ele o livro, e então ele voltou para sua casa.

     No decorrer da semana, ele foi lendo o livro e agindo conforme ele dizia. O livro era simples, ensinava algumas regras de conduta para ser sábio.
     O velho era sábio, isso o jovem sabia; então, se seguisse o livro, seria como o velho.
     O livro dizia coisas como: 
     "Não deixe sua raiva dominar você. Se sentir raiva, não adianta discutir. Não responda. Aguarde."
     "Você é um ser abençoado, um filho da natureza. Todas as manhãs, agradeça."
     "Coma uma maça sempre antes do almoço."
     "Quando o sol se pôr, faça uma oração, e agradeça por ter vida."
     "Respeite os mais idosos que você."
     (...)

     E assim por diante. Muitas coisas simples, fácil de serem seguidas.
     Aquele era o caminho e era simples. Magnífico! O menino começou a seguir imediatamente.
     Antes do almoço, ele parava e comia uma maça. Quando o sol ia se pôr, ele parava e fazia uma oração. Quando sentia raiva, ele reprimia. Sempre que acordava, agradecia. E assim por diante.

     Ele sempre fora um jovem muito nervoso, discutia muito com seus colegas de classe. Cada coisinha era um atalho para uma discussão.
     Agora, com o livro, ele não estava mais discutindo. Quando alguém lhe ofendia, ele reprimia sua raiva e a segurava. Tremia por dentro, mas não deixava ela agir.
     Estava resolvendo. Ele estava se sentindo melhor. Estava se sentindo diferente, novo, e isso o trouxe certa paz.

     Passando um ano, seguindo o livro, o jovem voltou a se sentir sem paz. Ele continuava seguindo o livro, as orientações, mas estava cada vez mais difícil de fazê-lo. 
     Ele acordava cedo e ia agradecer. Mas ele não via razões para agradecer e se sentia muito estranho fazendo aquilo, forçado.
     Antes do almoço, ele ia comer a maça, e estava cansado de maça. Perdia até a vontade de almoçar porque tinha que comer a maça.
     Quando seus colegas o ofendiam, ele reprimia a raiva. Mas aquilo consumia ele, ele ficava borbulhando por dentro, machucava muito. E ficava cada vez pior, cada vez ele sentia mais raiva. Sentia uma fúria de outro mundo, e a prendia.
     Sempre quando o sol se punha, ele ia fazer uma oração e agradecer por ter vida. Mas ele estava com raiva, sua vida estava uma droga, estava até pior agora. Ele não tinha razões nenhuma para agradecer, e nem orar, aquilo era idiotice.
     Ele começou a ter ódio de tudo, raiva da vida. Raiva daquele livro imbecil e raiva do velho que disse que o livro ia trazer a paz. Não havia paz. Ele não estava em paz. Estava com raiva, com ódio. Se sentia traído.
     Então ele resolveu visitar o velho.
     
     Chegando lá, o velho o recebeu como sempre; tranquilo e manso. Antes do jovem chegar lá, ele estava borbulhando, com raiva do velho. Mas ao ver o velho, tudo passou.

     - Meu velho - disse ele -, eu segui tudo que este livro falou e não estou tendo paz. Estou me sentindo pior do que antes. Não sabia nem que isso era possível, mas estou mesmo pior.

     O velho sorriu. O garoto não entendeu. Então o velho disse:

     - É assim mesmo. Você disse que não queria o abandono, e o abandono é o caminho mais fácil, porque a paz vem a você sem esforço. Então, você preferiu o caminho sem abandono. E o único caminho sem abandono é uma armadilha que o leve a abandonar. Então eu te dei esse livro, porque não há outro caminho. 
     - Você acreditou que tinha encontrado a solução. Então sentiu uma esperança e achou que essa esperança era a paz do velho. Mas esse livro te transformou num robô, mecânico. Agora você não vive mais, está completamente perdido. O livro é seu refúgio. Se você abandonar o livro, não saberá o que fazer, pois o que você é, é o que o livro diz. 
     - Agora você não sabe quem você é. Antes também não sabia, mas achava que sabia. Se soubesse, o livro não poderia fazer você ser diferente, porque você já estaria sendo você. Uma vez você, você é como o velho, você é sempre você. Nada o fará ser diferente, nem um livro e nem o mundo.
     - Agora você não é mais aquele que não se conhecia, e sabe também que não é esse que se tornou sendo o livro, porque não se sente em paz consigo. Então, você está perdido. Está completamente perdido. Caiu na armadilha do mestre.
     - Eu lhe digo, mate o livro. Queime-o. Será difícil, porque o livro se tornou quem você é. Se eliminá-lo, estará completamente no escuro. E, no completo escuro, só há um caminho: enxergar a luz, se encontrar.



~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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