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terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Poesia Que Não Teve Fim



\___/
*
*
Sinto você
Dentro de mim
É como um amor
Que não teve fim

Mais uma vez me encontro assim
Sem saber se silencio ou se eu me aproximo

Só que o amor é feito criança
Que não compreende nada
Mas que é cheia de esperança

Se ao menos eu pudesse escutar a você
Abrindo sua porta e invadindo seu ser
Por detrás daquilo que o teu corpo faz
Poderia saber se tu me enxergas de trás

Mas você é sempre um mistério oculto
Que visita o meu peito e invade meu mundo

Talvez ainda esteja procurando a alguém
Nesse mundo onde é raro, 
Alguém como eu, 
Querer-te tão bem

Então vou esperar mais um pouco
Quem sabe você não me enxergue?
Quem sabe você,

Assim como eu,
Também não se entregue?
*
*
*~ \/ ~*


~ * Palavras que saíram da Boca * ~
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sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Lentes de Aletim


     Caminhando pelas ruas escuras da cidade com suas lentes de visão noturna quadri-dimensionais feitas de aletim - material produzido à partir das lágrimas de seres humanos que acabaram de nascer -, ele enxergava todo o espectro emocional. Confessando ou não, ou mesmo não utilizando de palavras, ele sabia, ele podia ver; as pessoas ainda não o tinham encontrado.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

A Névoa Negra



     Havia dois anos que ele estava preso no topo mais alto da cidade. Os suprimentos estavam acabando e ele não podia sair daquela torre. A cidade estava devastada. Uma névoa negra densa havia chegada a dois anos atrás, invadido a cidade, e transformado todos os homens e mulheres em aterrorizantes monstros canibais.
     A névoa estava preenchendo toda a cidade, e aquela torre era o único lugar que, de tão alto, a névoa que era densa não conseguíra subir. Então ele ficou à salvo da transformação. Mas, para sua tristeza, ele fora o único. Aquela era a única torre alta da cidade.
     Ele era um químico famoso, muito inteligente e rico, que tinha revolucionado os conceitos químicos de seu estado. Por gostar muito de alturas, ele gastou uma grana absurda para construir o seu laboratório de análises químicas o mais alto que ele pôde. Ele almejava estar acima das nuvens. Ele contava brincando aos curiosos que ele queria tocar o céu. Talvez isto não fosse totalmente brincadeira, mas isso não importava mais agora. Seus suprimentos estavam acabando e ele estava sozinho. Isto estava começando a preocupá-lo seriamente.

~*~

     Quando a névoa invadiu a cidade, por sorte ou não, ele estava em seu laboratório no topo da torre, e, quando ouviu os gritos, olhou pela janela e pôde ver pessoas correndo desesperadas e a névoa tomando conta de toda a cidade. As luzes foram se apagando e as pessoas se transformando em monstros, e ele, lá de cima observando tudo, pôde compreender que era a névoa que estava causando todo aquele alvoroço.
     Agora a cidade estava morta. A flora havia secado, não havia uma folha ou grama sequer. Não havia mais luz e nem haviam mais os animais. A névoa parecia que tinha levado toda a beleza, cor e vida daquele lugar. Um silêncio enorme pairava sobre a cidade, noite e dia.
     Ele não podia descer, se não seria contaminado também, mas ele sentia intuitivamente que se conseguisse espantar a névoa, tudo voltaria a ter vida e as pessoas voltariam ao normal.
     As coisas pareciam coincidência demais para ele acreditar que aconteceram apenas por acaso. Ele era o homem mais inteligente da cidade, construíra a única torre tão alta a ponto de não ser atingida pela névoa, foi o único a não ser transformado, quando a névoa chegou ele estava no alto da torre em seu laboratório, e, além disso, sua torre era um laboratório de análises químicas. Aquilo não poderia ser por acaso. Tudo o que ele conseguíra concluir disso era que não foi a toa que as coisas aconteceram. Era ele quem iria espantar a névoa e salvar a cidade. Era seu destino.
     
~*~

     Durante dois anos ele iniciara o processo de experiências, e, como tinha muitos elementos químicos em estoque, ele, um a um, fora lançando-os pela janela e observando como a névoa regia quando entrava em contato com eles. A partir destas análises, ele foi combinando os diferentes elementos, testando-os novamente e fazendo novas combinações a partir dos resultados.
     Apesar do trabalho árduo e constante, até hoje ele não conseguíra algo satisfatório. Os suprimentos já estavam acabando e ele já começara a se preocupar com isso. Ele não tinha mais ideia do que fazer, e já tinha chegado ao seu limite de cansaço. Ele se dirigiu então à janela, olhou desapontado para a névoa la em baixo, depois olhou para o céu, e disse para os ventos: - é Deus, eu desisto. Eu tentei.
     Não havia mais o que ser feito então ele abandonou todos os seus projetos falhos, e, pela primeira vez em dois anos, ele esqueceu do trabalho, aceitou que iria morrer logo, logo, e simplesmente iniciou descanso à espera da morte. Por mais incrível que possa parecer, esta foi a primeira noite em que ele descansou tranquilo e de verdade.
     Quando acordou no outro dia, ele ficou olhando pela janela até sentir fome. Depois retirou um dos últimos enlatados de atum da geladeira, o abriu e começou a comer; esquecido da névoa, do seu destino, ou da química. Ele ia morrer em breve, já havia aceitado esta condição, então não havia mais o que se preocupar ou pensar.
     Então, não pensando em nada, apenas olhando para a janela e comendo o atum enlatado, repentinamente, lhe veio um insight. Uma combinação de elementos brotou em sua mente, sem nenhum controle próprio dele.
     Ele olhou mentalmente para a combinação, e ele teve certeza, pela primeira vez, de que era a combinação certa. - "Meu deus! Como eu não pensei nisso? É ela! É perfeita!"
     Eufórico, pegou seus frascos, uniu os elementos, e lá estava a solução; pronta em suas mãos.
     Já sabendo que ela iria funcionar, abriu o frasco e o despejou pela janela. Assim que aquela substância entrou em contato com a névoa, ela começou a se desfazer em uma reação em cadeia e, lentamente, a vida, a fauna, a flora, as cores e os seres humanos, voltaram a ser o que eram, e a névoa sumiu para sempre daquela cidade.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

A Garotinha que enxergava as Fadas



     Ele tinha dezoito anos naquela época, e tinha uma amiguinha de cinco anos que ele conhecia desde que ela tinha nascido. Ele gostava muito dela e perto dela se sentia criança igualzinho a ela. Uma vez ela disse que tinha um segredo que nunca contara para ninguém, porque tinha medo, e disse que não queria ter esse segredo escondido dele. Disse que tinha medo de não acreditarem nela.
     Ela perguntou a ele se ele acreditaria nela mesmo se o que ela contasse fosse impossível de se acreditar. Ele respondeu que sim, que sabia que ela jamais mentiria para ele. Ela então sorriu, deu um abraço nele, corou o rosto, e disse: "obrigada. Você não faz ideia de como contar isso a alguém, principalmente a você, me fará bem."
     Então ela, um pouco apreensiva, contou que via fadas, e que elas eram muito legais e que a ajudavam em tudo, até nos deveres da escola. Para surpresa dela, ele não duvidou, e ela esperava que ele duvidasse. Ele colocou a mão sobre a cabeça dela, fez um cafuné, e disse com firmeza: "eu acredito em você."
     Uma lágrima escorreu pelo rostinho dela e ela se sentiu envergonhada. Aquilo deveria ser realmente importante para ela. Com vergonha, escondeu o rosto com as mãos, dizendo "obrigada" e limpando a lágrima que ainda escorria. Vendo sua vulnerabilidade, ele se comoveu e a abraçou, tranquilizando-a, ressaltando que ela não precisava ter vergonha dele porque ele a conhecia desde que ela nascera e ainda era um pequeno bebê. Completou ainda que não importaria o que acontecesse, ele sempre acreditaria nela. Ela descansou então em seu colo, sentindo agora grande conforto.


     Passado alguns dias, as fadas e aquilo que ela havia contado não saíram da cabeça do garoto. Ele realmente havia acreditado nela. Ficou muito curioso se perguntando porque ela as via e ele não. Ela tinha contado também que existiam muitas fadas, talvez mais fadas do que seres humanos, porque elas eram seres muito pequenos e que cabiam na palma das mãos. Ela contou também que elas adoravam animais, flores e árvores, e que adoravam ficar ao ar livre, passando um tempo próximo a eles. Ele teve então a ideia de sair para um parque e procurar por uma fada.


     Ele se dirigiu para um parque muito bonito que ficava há alguns quilômetros de sua casa. Era um parque cheio de verde, gramado e árvores, e de bancos de madeira onde muita gente sentava e descansava em tranquilidade. Já havia chegado a primavera e as plantas e árvores estavam realmente recheadas de flores. Ele pensou que isso poderia ser um atrativo para as fadas e que isso poderia acabar ajudando-o a encontrá-las.
     Então ele começou a dar voltas pelo parque, olhando para todos os campos e lados, bem alerta. Subiu em árvores, caminhou pelos gramados mais floridos, aguardou sentado em um banco... Mas nada encontrou. Quando avistou uma das árvores mais belas daquele lugar - cheia de flores amarelas, rosas e azuis - ele foi até ela, parou junto ao tronco, e olhou para seus galhos com bastante atenção à procura de uma fada. 
     Quando estava procurando, alguém deu duas cutucadinhas bem suaves por trás de seu ombro, dizendo: "hey." Ele se virou, e havia uma menina bonita, parecia ter sua idade, com cabelos compridos escuros, e um vestido colorido estampado com flores e borboletas. Ele ficou nervoso. Ela era muito bonita.

- Ei, garoto, o que você está fazendo? - Perguntou ela com uma expressão curiosa.
- Eu... eu... - seu nervosismo o fazendo gaguejar. - Hum... Estou procurando por uma fada.

     Ela caiu na gargalhada. Era uma gargalhada gostosa, contagiante, parecia na verdade uma criança rindo. Ele ficou emburrado com isso, não gostava que rissem dele, e perguntou então do que ela estava rindo.

- Você não pode encontrar uma fada procurando por ela - respondeu ela ainda rindo.
- Ahn? Como assim? Mas... mas... - novamente gaguejando devido ao nervosismo ainda presente. - Uma amiga me contou que existem muitas fadas. Achei que se eu procurasse por uma, eu... eu... é... Eu encontraria...

     Ela sorriu. Então tornou a dizer:

- Ahh sim, isto é verdade. Existem muitas fadas, talvez até mais do que você imagine. Mas elas são seres muito delicados e, para se protegerem, elas permanecem invisíveis aos seres humanos. Você já reparou que os animais vivem olhando para os lugares e, quando você se pergunta o que é que eles estão olhando e olha na mesma direção, você nada vê? Chega até a parecer que eles são doidos. He he he - riu ela com leveza. - Eles não são não. Não é da natureza dos animais fazerem mal a ninguém, então não há porque as fadas se esconderem deles. Os animais podem ver as fadas, elas vivem acenando para eles.
     As fadas são seres amáveis - continuou ela - e elas adoram os animais. As fadas adoram os seres humanos também, gostam deles ainda mais do que dos animais porque eles podem conversar com elas, mas aparecer para eles ou não, é escolha apenas delas. Por isso não se pode encontrar uma fada, a não ser que ela decida aparecer para você. E elas podem assumir qualquer forma, podem aparecer como uma árvore, como um cachorrinho, como uma flor, como um som, como uma borboleta, ou mesmo como um ser humano normal. Elas podem aparecer mesmo assumindo forma de coisas que você nunca viu.
     Dificilmente ela aparecerá em sua forma verdadeira, porque desse jeito elas são muito vulneráveis. Mesmo um pensamento seu poderia destruí-las. Elas precisam ter muita confiança em você para aparecerem em sua forma original, porque isso poderia custar a vida delas. 
     Se você estiver procurando por uma, é muito provável também que ela já esteja do seu lado observando você. Mas aparecer ou não, é decisão exclusivamente dela. Geralmente, ela só aparecerá se tiver absoluta certeza de que você será amigo dela. Elas costumam aparecer para pessoas que são amáveis e muito carinhosas, elas prestam bastante atenção nisso. 
     Se uma delas aparecer para você, é sinal de que ela já poderia estar te observando há um bom tempo... E se uma fadinha gostar de você e você conquistar o coração dela, ela poderá se tornar sua amiga e viver a vida inteirinha ao seu lado, aparecendo de diversas formas e inclusive em sua forma verdadeira. 
     Se isto acontecer, e isto é muito raro, ela poderá viver sua vida inteirinha protegendo e amando você. É o maior tesouro que um ser humano pode ter, porque as fadinhas são mágicas e podem fazer qualquer coisa. Mas jamais insulte ou agrida uma delas, elas não irão te fazer mal, não faz parte da natureza delas. Mas elas são muito sensíveis e poderão se magoar. Assim, poderão escolher ir embora, não voltando nunca mais...

Ele franziu a testa e olhou para ela desconfiado:

- Espera aí, como é que você sabe tanto sobre as fadas?

     Ela sorriu com o canto da boca, inclinou a cabeça levemente para o lado, e ficou em silêncio olhando encantadoramente para ele, com os olhos brilhando, demonstrando grande interesse. Ele deixou escapar um zumbido: "hum...", e ficou olhando para ela também durante alguns segundos. Depois ela abriu um largo sorriso de aprovação, e estendeu sua mão aberta para ele em sinal de cumprimento, dizendo alegremente:

- Prazer, eu sou a Pérola. 


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

Poema Minha Espera


Minha Espera

A minha espera
Daquilo que espero
É não esperar
Aquilo que espero

Pois seguindo esperando
E não vendo chegar
Devagarinho é fácil
De desacreditar

Então aguardo tranquilo
Mas sem esperar
Assim permanece a certeza
Do que chegará.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

O Caminho da Magia



     É sabido que não se deve brincar com a magia e que a magia é coisa séria. Mais do que recitar palavras mágicas e realizar encantamentos, a magia é um universo muito perigoso.
     Todos que nascem com o dom para a magia chegam a um momento de suas vidas em que eles têm de fazer uma escolha. Não é a escolha mais simples, pelo contrário, é uma escolha muito difícil. Eles têm que decidir entre viver a magia ou viver uma vida tranquila e sossegada, onde todo o seu talento mágico será apagado definitivamente de suas memórias, para sempre, e eles jamais se lembrarão da existência da magia.
     A escolha número dois é a escolha sensata. A pessoa que opta por este caminho viverá tranquilamente. Ela poderá ser um camponês, um trabalhador; ter uma esposa ou marido, filhos, netos; e assim viver muito bem. Certamente será feliz. Amará e será amado como qualquer ser humano comum, porém não conhecerá os mistérios e segredos da magia. Talvez seja uma boa escolha, pois como eu ia dizendo, a magia é um mundo de mistérios, incerto e perigoso... muito perigoso.

~*~

     O que move a magia são os sonhos, e a escolha entre este mundo e o mundo comum se faz justamente aí. É a escolha entre abandonar o sonhador ou embarcar em uma jornada que se assemelha mais a um mergulho para dentro, profundamente, deste sonhador.
     Os que nascem com o dom para a magia nascem sonhadores e logo durante a infância recebem os seus primeiros vislumbres da magia. Durante esta fase eles não precisam fazer essa difícil escolha; os seus primeiros contatos com a magia são perfeitamente naturais e sem perigo nenhum. Fazem parte de sua infância. São presentes; surpresas; pequenas amostras que incitam o que eles poderão experimentar se, quando chegar a hora, optarem por este caminho. 
     O ponto crucial é quando se chega à fase adulta. É quando vem a responsabilidade; a responsabilidade de fazer a escolha e assumir todas as consequências que virão com ela. Escolher entre o conforto de uma vida comum ou optar pela incerteza misteriosa da magia.
     Eu, particularmente, jamais incentivaria alguém a optar pela magia como eu optei. Para mim o pior já passou e agora eu até agradeço por ter escolhido este caminho, pois minha vida se refletiu mágica. Aquela magia de minha infância não era nada comparado à magia que hoje vivo. Era apenas uma gota d'água. Agora ela está transbordando, é até difícil de segurar. 
     No entanto, continuo firme de que jamais incentivaria alguém a optar por este caminho, pois somente eu sei de todas as tempestades, tornados e monstros que tive que enfrentar desde que fiz esta escolha. Não foi fácil. Talvez eu tenha sorte em estar vivo e em sã consciência. Conheço alguns que enlouqueceram, outros que nunca mais vi nem ouvira falar. Talvez ainda estejam vivos ou talvez tenham fugido, rendidos ao medo. Ou, como acontece com alguns, talvez tenham tirado a própria vida num ato de suicídio. 
     Isto não é brincadeira. Quando estamos a ponto de se suicidar significa que está tão difícil de continuar vivendo, que a morte parece o caminho do paraíso. Você consegue imaginar o que leva uma pessoa a sentir isso? Eu sei. Sim, eu sei porque cheguei neste momento. Eu desejei a morte, e a desejei inúmeras vezes. Talvez por sorte eu ainda esteja aqui comunicando esta mensagem, talvez isso seja bom para você estar ciente da escuridão que sua alma estará sujeita ao optar pela magia.

~*~

     O primeiro grande baque que se tem ao optar por este caminho é ter acreditado ter escolhido o caminho mais seguro, mais feliz - o caminho da paz. Talvez amigo, no futuro, mas não hoje. Ah, não mesmo. Essa é a primeira grande decepção dos sonhadores; eles acreditam que verão a luz da magia logo, mas a verdade é que logo nos primeiros passos eles são lançados em um vale totalmente escuro e cegados de suas memórias. Você consegue imaginar isso? Você é jogado em um local desconhecido, escuro, sem enxergar o caminho à sua frente e nem o caminho atrás de você, esquecido de quem é, de onde veio e o que estava fazendo antes de ter posto os pés ali. Você está nas trevas! Ou melhor, você renasce nas trevas, sozinho e sem nenhuma orientação sequer. É um inferno; bastante conhecido como a Escuridão das Trevas. Uma vez nela, não há mais retorno.
     A boa notícia, ou melhor dizendo, a notícia menos pior é que a Escuridão das Trevas tem prazo de validade. Ela é temporária. Muitos perdem a sanidade ou a vida neste local, pois enlouquecem na tentativa de sair de qualquer jeito. Não é possível. Se ao menos eles soubessem desse prazo... Bastaria apenas esperar e resistir aos momentos, assim não gastariam tanta energia à toa e nem enlouqueceriam. Eu também não sabia do prazo quando caí ali, eu não tive nenhuma orientação. Por alguma razão eu consegui resistir cegamente até o final do prazo. Entrei por muitos becos sem saída, cheguei perto da loucura e da morte, mas por sorte o prazo acabou antes de eu ter tido um fim mais trágico
     Terminado o prazo de validade - e ele é variável para cada um - começasse a ouvir um ruído, inicialmente baixo, mas que poderá ser seguido e ele conduzirá a um feixe de luz, que então poderá ser seguido visivelmente para fora da Escuridão das Trevas.

~*~

     Logo que saído das trevas, há um grande alívio. Você está enxergando novamente e é tudo muito bonito. Depois de tanto tempo sem ver, você começa a dar um valor enorme à sua nova visão. Você pensa ter finalmente acabado o terror. Não amigo, é apenas um nobre engano, e logo se percebe isso. Percebe-se que, retornando ao mundo, algumas coisas mudaram desde a sua ausência.
     Primeiramente, os caminhos que você estava seguindo antes de cair na Escuridão das Trevas não existem mais. Ou seja, você não tem nenhum caminho a seguir. Acredite amigo, isso é aterrorizante. Tudo que antes estava sendo feito, as portas dos caminhos que você estava seguindo, agora encontram-se fechadas, ou então não fazem mais nenhum sentido em serem seguidas. A sua própria ausência fez aqueles caminhos mudarem de forma para você.
     Segundo, e talvez pior que o primeiro, é que você descobre que todo o seu círculo social mudou radicalmente com a sua ausência. Tanto tempo distante e sozinho fez a maioria de seus amigos, colegas e familiares, parecem distantes a você. A sensação é de que você os perdeu, de que aquela conexão que ligava você a eles encontra-se agora ausente. É bastante estranho. Você se descobre sozinho como nunca esteve, muito parecido com estar na Escuridão das Trevas, só que agora a sensação de solidão é ainda mais profunda porque você se sente só no meio da multidão.
     Terceiro, e pior dos três, é que você perdeu a capacidade de se comunicar. Tanta coisa que você passou sozinho e sem ter com quem se comunicar fez suas habilidades comunicativas verbais declinarem, ou simplesmente não condizerem mais com a forma que as pessoas que não passaram pelas trevas se comunicam. As pessoas podem estranhar o seu falar, a sua expressão, e você pode até ser julgado louco pelo mundo. Tanta coisa aconteceu no seu ser durante aquele tempo, que você simplesmente se transformou. Renasceu novamente, só que desta vez no mundo.
     Logo que sai da Escuridão das Trevas você vive então as Trevas no Mundo. Neste novo estágio existe uma novidade; não é apenas as trevas que são vividas, começasse a viver também os primeiros toques da magia propriamente dita. Aos poucos ela começa a ganhar forma, coisa que não acontecia durante a passagem pela Escuridão das Trevas

~*~

     O universo da magia, talvez satisfeito pelo seu empenho, pela sua persistência e pela sua decisão, começa então a se comunicar com você e a te dar os primeiros ensinamentos da magia. A priori, você está perdido aqui; não tem nenhum caminho a seguir e não compreende como irá lidar com o mundo comum assim. No entanto, você começa a magicamente descobrir que dons estão sendo despropositadamente revelados a você. Quem os está revelando? É impossível saber. É mágica. E eles começam a fazer muito sentido e a ter grande conexão com aqueles sonhos que você veio carregando lá da infância! Então você começa a viver as primeiras maravilhas e você até esquece a tortura que veio passando durante as trevas, pois começa a nascer a gratidão. A gratidão por ter passado por todo aquele sofrimento, pois compreende-se que a magia já estava acontecendo mesmo durante aqueles tempos escuros. Já estava acontecendo mesmo antes de sua decisão. Sua decisão apenas iniciou a moldá-lo para você poder aportar os poderes mágicos com eficiência.
     Associado a isso, você ainda não tem nenhum caminho a seguir, então ainda se sente um pouco confuso. No entanto, você aprende uma nova magia: Os Sinais Mágicos. Você desenvolve aos poucos uma percepção apurada para receber e reconhecer os sinais do mundo mágico. Eles conduzem você mesmo não sabendo o caminho a seguir. Não é tão simples como parece, mas também não é tão complicado. Tropeça-se muitas vezes tentando compreender estes sinais, e há muitas decepções ao tentar desenvolver a percepção deles; mas no mundo da magia tudo é assim. Os poderes mágicos crescem com o tempo e é com ele também que vem a capacidade para compreendê-los.

~*~

     A partir daí você gradualmente migra das Trevas no Mundo para viver o Mundo da Magia propriamente dito. E a partir daí, meu amigo, não há muito o que dizer aqui. Acontece muita coisa e você passa finalmente a compreender porque é que um mago vive tão bem e porque ele é tão biruta e sonhador.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

O Ser Humano e os Papagaios



     Aquele rapaz estava ficando cada vez mais conhecido e procurado. As pessoas o procuravam porque estavam sofrendo, suas vidas estavam se tornando cada vez mais pesadas e difíceis de continuar seguindo em frente. Muitas pessoas iam a sua procura alegando que estavam quase a ponto de se suicidarem e que precisavam de sua ajuda.
     Tanta procura estava acabando com seu conforto e com sua liberdade, valores estes que por anos buscou cultivar. Não era incômodo para ele as pessoas pedirem sua ajuda, mas ele não queria ser usado, não queria que as pessoas o procurassem apenas por causa de seu conhecimento, isso não fazia sentido nenhum para ele. Ele estava em paz. Queria apenas compartilhar essa paz e amar as pessoas, não segurá-las.
     Aquele acontecimento foi tomando tal proporção que ele não podia nem mais sair pela rua sem ser parado. Seu conhecimento passou a se tornar um peso para ele. Na verdade, não era o seu conhecimento que causava o peso, o seu conhecimento o tornava feliz. O que estava causando o peso era que as pessoas estavam tomando conhecimento de que havia o conhecimento com ele, e assim estavam espalhando a notícia de que ele podia solucionar todos os problemas da vida delas. Então, como todo mundo estava cheio de problemas, praticamente a cidade inteira passou a procurá-lo. Não apenas isso, pessoas das cidades vizinhas passaram a procurá-lo também, e, com o tempo, pessoas de cidades distantes também apareceram à sua procura, e apareciam em grupos; grupos grandes.
     Ele não estava suportando mais, aquilo estava tomando proporções críticas. Então, numa madrugada dessas, ele pegou suas coisas, avisou o que iria fazer e para onde iria a suas pessoas queridas, e disse a elas para não contarem a mais ninguém onde ele estava. Se retirou então às sombras da cidade e foi caminhando em direção a um bosque. Passou a viver por lá.
     De tempos em tempos, as pessoas queridas apareciam no bosque, sozinhas, e traziam suprimentos a ele, passando ambos um tempo juntos. Ele achou ter encontrado a solução, havia voltado a viver sua liberdade e sua tranquilidade junto das pessoas que amava. Não havia nada mais belo e prazeroso do que isso para ele.
     Num dia tranquilo de sol e nuvens, logo cedo, enquanto ainda estava tomando um banho de cachoeira, ele foi surpreendido por algo que levou sua tranquilidade embora. Mais de quinhentas pessoas apareceram de repente, tanto homens quanto mulheres, e se instalaram ali. Ele imaginou como essas pessoas o haviam encontrado, pensou que algum de seus queridos poderia haver contado. Depois ele pensou melhor. Era impossível, havia amor entre eles. Logo ele compreendeu. O pessoal da cidade sabia as pessoas que eram queridas a ele. Certamente a falta dele, com o tempo, deixou claro que ele havia fugido, pois todos sabiam que ele não gostava muito de toda aquela procura. Então, era lógico, alguém deveria ter seguido um de seus queridos e descobrido onde ele havia se instalado. Agora não havia como fugir. As pessoas tinham montado suas barracas ali e diziam que só sairiam dali iluminadas, e que ele era o único que havia a resposta para isso.
     Como não havia mais o que fazer, ele aceitou seu destino. Quando ele sentava para comer, as pessoas também sentavam e comiam. Quando ele ia se banhar no rio, as pessoas também iam se banhar no rio. Quando ele ia se deitar, as pessoas iam se deitar também. Quando ele descansava em silêncio, as pessoas também descansavam. Quando ele subia em árvores, as pessoas também subiam em árvores.
     Um dia, ele simplesmente não suportou mais e disse em voz alta a todos:

- Vocês nunca irão se tornar seres humanos de verdade. Vocês são papagaios!

     As pessoas se entreolharam confusas. "Papagaios? Porque ele nos chama de papagaios? Não há nem papagaios por aqui, será que ele está brincando conosco?" - Mas sua expressão facial irritada não deixava muito espaço para acreditarem ser uma brincadeira.

- Porque você nos chama de papagaios, senhor? - Perguntou um do grupo.
- O papagaio pode aprender a falar, e pode aprender a falar claramente; mas ele só aprende as palavras e as frases que escuta sendo pronunciadas por seu dono. - Prosseguiu ele. - Então eles não podem falar por si mesmos, eles só podem repetir. Então nunca aprendem a comunicar de verdade. São mestres da imitação.

     As pessoas compreenderam o que ele queria dizer, era óbvio. Eles estavam a dias imitando tudo o que ele fazia tentando descobrir qual era o segredo de sua paz.

- Senhor, nós já dissemos, nós só estamos aqui porque desejamos a paz que você tem e diz que todos podem ter. - Completou outro do grupo. - Nos diga como obtê-la e nós juramos ir embora. Não podemos sair daqui sem essa paz, pois sabemos como é a vida lá fora. Vamos acabar sofrendo novamente, e não demorará até que alguns de nós comece a desejar a morte.
- É muito simples, sério. - Respondeu ele. - É só vocês seguirem a própria natureza de vocês, então terão tudo o que necessitarem até o fim de suas vidas, e terão sem haver esforço, por isso viverão felizes e em paz. Prestem atenção: eu não estou dizendo que não haverá trabalho. Pode haver trabalho mas não haverá esforço. E como pode haver trabalho sem esforço? Isso é algo que vocês compreenderão ao seguirem a natureza íntima de vocês cada vez mais. Pode demorar um pouco para vocês estarem seguindo-a com confiança e coragem plenas, mas tudo começa com um primeiro passo.
     Entendam uma coisa: o esforço só existe porque vocês não seguem a natureza de vocês. - Continuou ele. - Seguindo ela vocês farão as mesmas coisas que fazem com esforço, porém sem se esforçarem. Vou dar um exemplo: todos vocês piscam e respiram como eu, correto? Ok. Mas há esforço? Não. Não há porque é natural, acontece. Agora tentem piscar e respirar propositalmente. Observem; depois de algum tempo fazendo-o, logo, logo, irá se tornar um esforço continuar, e será um esforço progressivo. Cada vez mais irá se tornando um esforço maior.
     É apenas por isso que vocês sofrem e são infelizes, vocês estão todos remando contra a corrente. - Concluiu ele. - Vocês não estão deixando a vida acontecer, estão querendo fazê-la acontecer de algum jeito. Vocês estão se esforçando, tentando piscar e respirar por vontade própria. E está se tornando um esforço cada vez maior viver assim, então estão crescendo em sofrimento e não em paz.
     Deixem a natureza conduzir vocês e parem de me seguir. - Disse firmemente. - Eu não sou a natureza de vocês, é vocês quem o são. Seguindo-a, uma coisa eu posso lhes garantir, vocês não compreenderão mais porque as pessoas se esforçam tanto e são infelizes. Parecerá que é escolha própria delas.


~ * Palavras que saíram da Boca * ~

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

O tesouro existe mesmo?


~ * ~

     Sim, o tesouro existe e sua vida pode mudar da água para o vinho se você tomar consciência da existência dele. Apenas isto é preciso: você apenas precisa tomar consciência da existência dele e ele poderá fazer todo o resto do trabalho por ele mesmo.
     Se você o encontrar, compreender o que eu chamo de "tesouro", uma nova vida brilhará em você. Uma nova confiança, um novo entendimento e uma nova trilha surgirão disso. Seus sentimentos explodirão e suas qualidades desabrocharão. Elas sempre estiveram em você, latentes a espera de seu entendimento. Elas precisam ser trabalhadas, mas tudo ocorre muito naturalmente.
     Assim que você toma conhecimento desse tesouro que comparo a uma fonte, essa fonte alimentará você. Alimentará também suas qualidades, sua confiança e sua energia. Alimentará as sementes que já nasceram com você, só que agora para torná-las árvore e gerar muitos frutos. Ela o tornará também progressivamente mais coeso, mais íntegro e firme; seguro de si mesmo e de sua caminhada.
     Para você ter ideia do quão sólido é este entendimento, você terá certeza suficiente para que não exista ser vivo capaz de desfazer a sua compreensão. É algo tão íntimo, tão vivo, tão transbordante, que simplesmente morrem todas as possibilidades de haver um desvio. Não há como. Este entendimento passa a jorrar de você espontaneamente, quase como vômito.
     Existem barreiras que impedem as pessoas de adquirirem este entendimento, porque as afastam de maneira progressiva dele. Estando com esta compreensão, com este tesouro, com esta fonte; você passa a caminhar pela vida juntamente com ela. Todas as suas ações, sentimentos, ideias, relações e revelações, passam a provir desta compreensão. Você caminha com ela; vive com ela; age com ela; observa com ela; sente com ela. Você experimenta todas as suas percepções juntamente com ela. Então, você não se perde jamais. Você está caminhando, sentindo e vivendo, em conjunto com esta compreensão que chamo de tesouro.
     Quando este entendimento está ausente, a pessoa vive, sente e experimenta, sem ele. Caminha cada passo sem o entendimento, assim segue cada vez mais para distante dele. Todas as ideias, conceitos e filosofias acumulados sem esta compreensão, tornam-se barreiras, porque não foram adquiridos em conjunto com ela. Então essas ideias que movem um ser sem compreensão, fazem-o caminhar de acordo com elas próprias pela vida, ou seja, fazem-o o caminhar de acordo com as ideias que foram criadas sem a presença da compreensão.
     Somos seres acumulativos; podemos acumular informações e conhecimento. Isto pode ser um problema quando a compreensão está ausente, porque vamos acumulando mais e mais coisas que foram criadas sem a presença dela. Todas essas coisas precisam ser vistas, e a compreensão faz todo este trabalho sozinha. 
     Quando se caminha em destino à compreensão, a vinda dela revela ao ser tudo aquilo que ele acumulou não estando com ela. De uma a uma, essas coisas passam a ser reconhecidas; mas não é tão simples e direto como é dito aqui. Então, quando a compreensão vem, ela tem muito trabalho a fazer, e uma grande quantidade de trabalho passa a ser exercido no ser, por ela. Então há muito movimento interno. Muitas emoções, pensamentos, conceitos, ideias - tudo aquilo que foi experienciado e acumulado sem a presença da compreensão vêm a tona para ser retrabalhado por ela.
     À medida que a compreensão vai retrabalhando o ser, o ser vai ficando cada vez mais consolidado nela, vai se tornando cada vez mais "um" com ela. Então o ser também vai mudando. Os sentidos vão mudando, a forma com que eles percebem o mundo também vão mudando. 
     O ponto final é quando a compreensão e o ser estão trabalhando tão juntos, que a distinção entre cada um deles vai ficando cada vez mais difícil de se fazer. É quando a compreensão e o ser estão unidos; é quando a compreensão e o ser estão vivendo juntos - é quando a compreensão e o ser se tornam um.



~* Palavras que saíram da Boca *~

domingo, 8 de dezembro de 2013

Cartas de Amor sem endereço



     Depois que seu avião caiu no mar, ele nadou até a ilha mais próxima. Talvez por alguma obra do destino ele fora o único sobrevivente daquele acidente
     Isolado do resto do mundo, os seus primeiros dias foram até tranquilos; ele aceitou bem seu destino. Possuindo grande confiança na vida, não era muito de julgar o que acontecia, assim vivia sempre em paz consigo mesmo. Então, como sempre, olhou para o lado positivo. Confiou que não tinha caído ali à toa, e aproveitou para descansar um pouco de todo o universo.
     Passado bem os primeiros dias, ele começou a sentir um buraco. Uma fome que alimento não sacia, uma sede que água não satisfaz, uma dor que remédio nenhum cura, um vazio que coisas não preenchem; ele sentiu falta do amor. Não havia nada naquela ilha além dele, uma viva natureza - ideal porque não lhe faltava alimento - e alguns animais silvestres. Não havia como seu amor entrar em fluxo ali, e assim não havia como ele se alimentar dessa energia viva.
     Tudo o que sobrara de sua queda era a mochila que carregava nas costas. Dentro dela, não havia muita coisa: apenas alguns biscoitos, a erva que ocasionalmente fumava, sua carteira e documentos, algum dinheiro, uma caneta, e seu caderno de anotações. Nada além disso.
     Ele pegou seu caderno e começou a escrever cartas de amor, mas ele não tinha a quem escrever. Então ele escrevia cartas de amor não endereçadas. Isso alimentava seu coração; fazia-o sentir-se vivo, esperançoso e amoroso. A cada carta de amor nova que escrevia, ele destacava a folha, esperava o vento chegar, estendia a folha aberta ao ar, e deixava-a ser levada pelo vento. Ele não fazia ideia alguma para onde a carta iria, mas ele esperava que alguém a pegasse em algum lugar. Ele assinava bem assim no final de cada carta: "de alguém preso numa ilha deserta distante no mar". Apesar de não ter remetente, ele acreditava estar escrevendo para alguém, ele só não sabia a quem era.
     Passado meses ali, toda vez que sentia aquele impulso amoroso em busca de alimento, ele escrevia uma carta, colocava ao vento, e a abandonava ao mesmo. Ele ficava observando o papel subindo ao ar, sumindo no horizonte. Seu peito se preenchia a cada carta nova que enviava, e, apesar de não ter remetente, alimentava a si mesmo e ele se sentia bem. Ele sentia estar escrevendo a alguém, ele só não sabia para quem era.
     Depois de alguns anos assim, talvez por sorte, ele avistou um navio vindo lá no horizonte. Ele se levantou sabendo que essa poderia ser a sua única chance de sair dali, e começou a agitar suas mãos no ar para que o navio o enxergasse.
     O navio foi se aproximando da ilha, parecia que o tinha visto. Era o seu resgate! Enquanto o navio se aproximava, ele arrumou suas poucas coisas na mochila, colocou a mochila nas costas, e postou-se de pé ao aguardo do navio que se aproximava.
     Quando o navio atracou, ele teve uma grande surpresa. Ele não tinha sido encontrado por acaso, as pessoas tinham o procurado. Tinha um grupo de pessoas, tanto homens quanto mulheres, que batiam palmas olhando para ele, como se aguardassem aquele momento. Uma daquelas pessoas estendeu a escada, esticou sua mão para ele a agarrar, e o puxou para dentro do navio. O rapaz perguntou: "por que essas pessoas estão batendo palmas?", e o garoto que o havia puxado lhe respondeu: "essas pessoas amam você! Todas elas receberam suas cartas e se sentiram imensamente tocadas e preenchidas por elas. Isso as fez se reunir, e agora elas não se sentem mais sozinhas; tornaram-se amigas, e acabaram descobrindo a existência de outras pessoas sozinhas iguaizinhas a elas. Isso tudo se iniciou por causa de suas cartas, e você nem ao menos sabia do que estava acontecendo. Suas cartas continuavam sendo recebidas por pessoas diferentes, que se juntavam ao grupo. De certa forma elas sentem que você as ajudou, sentem grande gratidão. Então, para retribuir, elas organizaram uma comitiva para resgatar você. Seja bem vindo, este aqui é o seu lugar! Você não está mais sozinho."


~* Palavras que saíram da Boca.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

O Dia do Juízo Final



     De repente, o céu começou a fechar. Nuvens densas e negras surgiram distantes no horizonte, se agrupando, e tornando aquele inicio de tarde escuro como uma noite. Assim que o tempo escureceu, os cidadãos da cidade começaram a sair de suas casas para observar o que estava acontecendo. 
     Não estava previsto chuva para aqueles dias. Era verão, e nenhum sinal de frentes frias haviam sido anunciados pela meteorologia local. Eles se perguntavam uns aos outros, "o que está acontecendo?", mas ninguém sabia responder. Aquilo era novidade para todo mundo.
     O céu ficou coberto de nuvens escuras. Elas se encontraram umas com as outras, chocaram-se, e não houveram trovoadas. Nenhum sinal de chuva. 
     Um garoto veio correndo do outro lado da rua e parou perto do muro de uma casa, próximo à entrada dela, onde um pessoal tinha se encontrado para ver o que estava acontecendo. Havia umas quinze pessoas mais ou menos ali. Assim que parou, ele colocou ambas as mãos sobre os joelhos, inclinando o corpo ofegante, tomou um ar, e disse quase em sopro: "eu sabia, eu sabia! Eu sabia que esse dia ia chegar!"
    A dona da casa, que estava com o filho no colo, e duas meninas próximas a ela, uma já adolescente, perguntou ao garoto: "que dia menino? Do que você está falando?".
     "O dia do juízo final, dona." - Respondeu o garoto. - "O dia em que o enviado dos céus descerá com toda a sua fúria para acertar as contas de Deus, e julgar os seres humanos de acordo com seus pecados e sua conduta."
     Havia grande temor nas palavras daquele garoto, e, sensíveis que são, as crianças começaram a chorar assustadas, tanto o bebe, quanto a menina mais nova, a exceção da adolescente que olhou para o céu curiosa, "será mesmo?", ela pensava.
     "Isso não existe não menino", disse calmamente a mãe das crianças, "isso é uma história que contavam para a gente ter disciplina quando era..."
      Um grande estrondo interrompeu aquela dona. Aquele barulho vinha lá das alturas. Todos eles olharam para cima instantaneamente, por instinto.
     Um círculo de trovão e raios começou a se formar nas nuvens negras que estavam no céu logo acima deles. A intensidade dos raios no círculo foi aumentando, e ele começou a entrar em movimento, girando. O movimento foi aumentando de velocidade, e aumentando, até que não se via mais o movimento de tão rápido que estava; apenas uma bola de raio com grande energia. Então um outro estrondo ecoou daquela bola de energia, e ela começou a se abrir, abrindo um buraco de dentro para fora.
     Um raio saiu velozmente de dentro daquele buraco, atingindo o chão com força e assustando todo mundo. Atingiu o chão próximo àquele pessoal e, além de um grande buraco, deixou em seu lugar uma longa escada de concreto, que vinha do céu até o chão. O pessoal começou a ficar inquieto, muitos diziam "meu Deus!". Ouvia-se alguns gritos, "a profecia está se cumprindo", e alguns corriam estranhamente desesperados. As crianças seguravam nas pernas de suas mães, e algumas outras corriam para dentro de suas casas. O medo se alastrou. Muitos sabiam que carregavam muitos pecados e que poderiam ser exilados, ou pior, serem enviados diretos para o inferno.
     Da ponta da escada, lá de cima, começou a descer um ser com asas. As asas dele eram gigantescas, negras, deviam ter três vezes o tamanho daquele ser. Ele se assemelhava a um ser humano, porém era um pouco maior que um, possuía pele acinzentada e descia com aquelas asas esticadas de ponta a ponta, com cabelos compridos e escuros, e vestido por um manto negro rasgado em algumas partes. Segurava uma espada desembainhada na mão esquerda. Descia degrau por degrau lentamente, numa postura confiante a ameaçadora. Seus olhos eram vermelhos, e, de cabeça baixa e com o olhar fixo à frente, a fúria era visível em seu rosto. Enquanto descia, descargas elétricas saíam dele, em intervalos de tempo, fazendo um som parecido com o de fios elétricos em descarga, e empurrando o ar à sua volta para longe.
     Outras pessoas, ao verem aquele ser se aproximando, começaram a correr desesperadas. Aquele ser falou: "não adianta correr, eu vou achar você onde quer que você esteja! Repressor, enganador, destruidor de vidas, aprisionador da liberdade! Fuja, mas em breve eu irei achar você onde quer que você esteja!". A voz dele ecoava por todo lugar, parecia que dava para ouvi-la no planeta inteiro. Alguns pararam, com medo de algo pior, outros continuaram a correr, desesperados, não se davam nem tempo para pensar.
     Ele continuou andando, vagarosamente, se aproximando da terra cada vez mais. Quando pisou no ultimo degrau, e então no chão, ele parou próximo ao pé da escada, girou sua espada no ar e encravou a ponta no chão, enquanto suas asas batiam e se fechavam em torno dele, espalhando o ar à sua volta e jogando poeira para todos os lados. Com a espada encravada no chão e apoiando a mão esquerda no punho dela, ele levantou a mão direita, apontou o dedo para aquele garoto que falou da profecia, e disse:

- Você, me diga... Cade ele? - Sua voz parecia o som de milhares de vozes falando ao mesmo tempo.
- Ele quem? - Respondeu o garoto.
- Deus, cade Deus? - Continuou ele.
- Deus mora lá em cima, meu senhor. Esperávamos que ele tivesse te enviado para nos julgar. - Respondeu o garoto.
- Eu não vim para julgar, eu vim para matar. - As pessoas se assustaram ao ouvir isso. - Eu vim para matar Deus, ele está acabando com nosso povo.
- Senhor... - Continuou o garoto. - Nosso Deus mora lá em cima, com seus anjos, no céu.

     Aquele anjo negro ficou confuso.

- Garoto, não há Deus nenhum lá no céu. - Disse o anjo. - Sorte dele, se não eu já o teria encontrado. Eu desci para terra para encontrá-lo e acabar de vez com o problema de nosso povo, os anjos. Desde que Deus começou a ditar as regras por lá, nosso povo parou no tempo. A evolução acabou, todos estagnaram. Eu, mestre da guerra e protetor dos anjos, não podia ficar parado apenas observando isto acontecer. Eu tinha que tomar alguma atitude. Nosso Deus habita a terra, e por isso não temos contato com ele. Depois que meu povo escutou suas palavras, eles perderam a capacidade de evoluírem. Parece que se tornaram cegos. Deus passou a dizer tudo o que os anjos devem e não devem fazer, e eles cegamente seguem esses mandamentos. Eles não julgam mais por si mesmos. Então eles perderam o livre-arbítrio, perderem a capacidade de julgarem o que é bom ou ruim para si próprios, perderam a capacidade de seguirem sua própria experiência e assim evoluírem seus espíritos. Paramos no tempo.
- Meu senhor, eu insisto. - Disse o garoto. - Deus mora no céu. É de lá que eles nos observa e nos orienta. Devemos seguir seus mandamentos para não cairmos em falso, escapando do mal, e então assim podermos enfim ir para o céu.
- Garoto, está havendo um grande mal entendido, pois eu conheço o céu como cada pena de minhas asas e não há nada ali além dos anjos e eu.
- Senhor, isto é novidade para mim. - Prosseguiu o garoto, um pouco confuso. - Desde cedo aprendemos que Deus está nos observando lá de cima. Temos até um livro com suas palavras, nos ensinando o que é certo e errado para nós. Não há nenhum Deus aqui; somente nós, seres humanos, as plantas e os animais.

     O anjo parou por um momento e fechou os olhos. As pessoas ficaram olhando para ele, curiosos. Então segundos depois ele abriu os olhos e disse:

- Então houve um grande mal entendido e uma grande confusão. Vocês tem um Deus que devem obedecer e ele está lá no céu. Nós temos um Deus que devemos obedecer e ele está aqui na terra. Mas não há nenhum Deus aqui e nenhum Deus lá. Mesmo assim seguimos a vida inteira acreditando que tem alguém nos julgando. Nos sentimos até culpados a cada coisa que fazemos e que suas palavras dizem não serem corretas, o que é inevitável, pois já investiguei e faz parte da nossa natureza fazer certas coisas. Seguimos a vida inteira controlando nossos atos, assim não podemos ser naturais. E isso tudo por causa de um Deus que não está aqui e que também não está lá. Oh Deus! Eu preciso voltar ao céus e avisar a meu povo que Deus não existe por aqui. Talvez ele nunca tenha existido e nós tenhamos estado esse tempo todo nos controlando por causa de uma ideia da sua existência. Você! - Disse apontando para ele novamente. - Você devia avisar ao seu povo também, porque eu te garanto, não há ninguém julgando vocês lá de cima. Nós sempre invejamos vocês, humanos, porque acreditávamos que vocês eram livres disso, e que assim podiam viver em paz, sendo vocês mesmos, coisa que nunca tivemos privilégio em ser. Obrigado pelas palavras, devo avisar aos anjos o mais rápido possível e acabar com essa bagunça.

     Então o anjo negro desencravou a espada do chão, declinou o corpo em sinal de reverência, virou-se de costas, e subiu o primeiro degrau. Bateu o pé duas vezes no degrau, e este descolou-se do chão, subindo em direção ao buraco no céu. O anjo ficou parado no primeiro degrau enquanto a escada ia sendo sugada lentamente para dentro daquele buraco. As pessoas ficaram observando o anjo subindo para o céu, em grande silêncio. Assim que o anjo atravessou o buraco, o buraco se fechou, e as nuvens se afastaram, abrindo o céu e clareando novamente o dia.





~* Palavras que saíram da Boca *~

terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O Mistério do Lago Vermelho



     Há muito tempo atrás existia um pequeno vilarejo afastado da cidade, alocado em um bosque. As pessoas que viviam neste vilarejo viviam da agricultura e da caça, e diariamente era preciso muito trabalho, porque o solo não era muito fértil, raramente chovia, e a incidência de pragas era constante. As crianças deste lugar aprendiam a trabalhar logo cedo, cuidando da plantação e caçando, porque era disso que eles sobreviviam.
     Neste vilarejo, morava um menino, adolescente, que era mal falado porque não gostava de trabalhar. Seus pais viviam dizendo que ele nunca se casaria, e era constante ele receber críticas, não só dos pais, mas também dos vizinhos, que costumavam chamá-lo de preguiçoso.
     Desde pequeno ele teve que suportar esse tipo de ofensa. Na escolinha, os seus colegas costumavam desenhar uma manada de ovelhas brancas, com uma ovelha negra no meio, e eles escreviam o nome dele por cima da ovelha negra.
     Ainda pequeno - não resistindo às ofensas e escutando o conselho de seus pais - o menino tentou trabalhar, ajudando na agricultura. Ele se sentia mal fazendo aquilo, era muito esforço para ele.
     Seu pai o deixou cuidando de um pedaço de terra de alguns metros quadrados e, durante três tentativas, o menino deixou a praga se espalhar, perdendo toda a sua plantação, inclusive expandindo a praga para a terra que o pai estava cuidando. Seus irmãos começaram então a chamá-lo de imprestável, e depois dessa experiência ele simplesmente desistiu da agricultura.
     Tentou também a caça, mas ele era tão desastrado que não conseguia nem ao menos se camuflar no mato. Assim, ele espantava os animais, atrapalhando também as pessoas que estavam caçando junto com ele. Ele resolveu então desistir e assumir para si mesmo que ele não tinha condições de trabalhar. Teve então que suportar as críticas durante toda a sua infância.

~*~

     No lado leste daquele vilarejo havia um lago. Um lago enorme, com uma ilha bem no meio. O lago era tão enorme, que para enxergar a ilha era preciso forçar as vistas. Ninguém nunca tinha ido naquela ilha, pois ninguém nunca havia tocado nas águas daquele lago.
     A água que corria ali era vermelha, turva, parecendo sangue. Não dava para enxergar nem um palmo abaixo d'água. Contava-se que há milhões de anos, houve uma grande batalha nas terras daquele vilarejo, que definiria a raça que dominaria aquelas terras, e a raça que viveria nela durante toda a eternidade. A história contava que a batalha perdurou por três séculos, e que houveram mais de quinhentos mil mortos. Contava-se ainda que todo o sangue escorrido na batalha percorreu morro abaixo, em direção aos planos baixos, formando aquele grande lago.
     Ninguém do vilarejo nunca ousara tocar nas águas daquele lago, pois contava-se ainda que ela era amaldiçoada pelos espíritos dos corpos que morreram por ali. Diziam que se uma gota daquele lago tocasse na pele de alguém, a pele desta pessoa derreteria instantaneamente e o seu sangue escorreria para o lago, juntando sua alma com as almas dos guerreiros que sofreram na batalha. Ninguém desejava isso para si mesmo.

~*~

     Ainda pequeno, ele teve também que presenciar a morte de seu querido avô que, antes mesmo de morrer, deu ao menino três sementes de cacau, alegando que estas sementes andariam com ele por toda a vida e que o traria sorte, assim como acontecera com ele. Ele gostava muito desse avô. Ele era a única pessoa que não o criticava e ainda o dizia: "filho, siga o seu coração sempre e não escute o que as pessoas dizem sobre você. Cada um nasce da forma que a natureza requer, e ela sempre terá suas razões".
     Apesar de tudo o que vivia, todos os dias ao acordar, ele colocava as sementes que seu avô lhe dera no bolso e dizia para si mesmo: "vovô, eu sei que essas sementes um dia ainda me trarão sorte".

~*~

     As pessoas deste vilarejo não precisavam de muito conhecimento para sobreviver, assim as atividades escolares encerravam cedo, aos doze anos. Assim que terminara a escola, ele ainda era bastante mal falado e criticado. Para fugir destas críticas diárias, este menino na maioria dos dias escapava para perto daquele lago de águas vermelhas.
     Aquele era o único lugar que as pessoas não costumavam visitar, porque tinham medo. Como este garoto precisou um dia fugir para lá, acabou descobrindo que estando lá, nada acontecia com ele, não tendo então como ter medo. Ele passava grande parte de seus dias ali, sozinho, até agradecido que as pessoas sentiam medo daquele lugar. Ele achava melhor assim, melhor só do que ouvindo críticas.

~*~

     Sim, você está certo em pensar que ele não era um garoto muito feliz. Ele quase sempre sentia-se carente e rejeitado, e em alguns de seus dias ele até desejava a morte. Mas isto não o incomodava mais tanto. Com o tempo ele aprendeu a conviver com isso. Às vezes, sem nenhuma razão, ele se sentia contente, esperançoso. Ele sentia que algo bom poderia acontecer a qualquer momento.
     Num dia desses, num fim de tarde, sentado perto daquele lago, ele olhou para aquelas águas vermelhas turvas e nasceu uma curiosidade... A cada dia que ele tinha estado ali, a água do lago estava em um nível diferente, e não havia chovido dia nenhum. Aquela água não tinha vindo do sangue das pessoas mortas? Como estava variando de nível então?
     Foram quinhentas mil pessoas mortas? - Ele se perguntou. - Três séculos de batalha por este pequeno pedaço de terra? Esta história é estranha... E isso aconteceu a tanto tempo... Como é que esse lago nunca secou? - Sua curiosidade foi aumentando. - E se ele as vezes sobe... Tem que haver mais pessoas morrendo por aqui para entrar mais sangue. - Naquele vilarejo havia tanta pouca gente, que uma morte era um evento meio raro. Eles faziam até uma procissão para cada novo falecido. - Do tempo que comecei a vir aqui, ninguém morreu... Como é que a água deste lago subiu de nível? Isso é estranho... Será que existe vida e gente morrendo naquela ilha? - Ele estava sentindo uma espécie de dúvida investigativa. - Precisaria morrer muita gente para subir toda essa água... Talvez ele seja mesmo amaldiçoado...
     Já estava anoitecendo e ali era perigoso à noite. Ele resolveu então voltar para o vilarejo, carregando sua curiosidade junto com ele no caminho.


~*~

     Esta noite ele não estava conseguindo dormir. Uma interrogação fora plantada em seu peito e ele não parava de pensar naquele lago. "Será que há vida naquela ilha? Será que aquela história toda é mesmo real?", ele pensava.
     Três séculos de batalha são trezentos anos. É tempo demais - pensou. - Um guerreiro com uma espada, acho que conseguiria matar facilmente cem pessoas em um dia -continuou pensando... - Um dia tem vinte e quatro horas. Então se ele matasse quatro pessoas por hora, que é pouco para o tempo, em um dia ele teria matado quase cem. Quinhentos mil dividido por cem, hum... Dá cinco mil. Então matando cem pessoas por dia, em cinco mil dias ele já teria matado todas as quinhentas mil da história. Mas não foram três séculos? - Ele sentiu que havia algo errado. Sua dúvida foi crescendo e fazendo-o investigar ainda mais. - Um ano tem trezentos e sessenta e cinco dias mais ou menos. Então em um século tem trinta e seis mil e quinhentos dias. Matando cem pessoas por dia, em um século seria mais de três milhões de pessoas mortas! Nossa, é gente demais, imagina em três séculos?
     Alguma parte desta história está mal contada - continuou refletindo. - E ainda se houver gente morrendo e alimentando o lago pela ilha, de onde veio essa gente? Como é que eles chegaram naquela ilha se eles não poderiam atravessar o lago? - Ele estava sentindo como se estivesse tendo uma grande revelação. - Se há gente do outro lado, o lago pode ser atravessado, ou então grande parte das pessoas foram soterradas quando o lago se formou, e uma parte ficou à salva naquela ilha... Se for assim, há gente ali - a história inteira ficou estranha para ele.
     Depois de tanto pensar, o garoto finalmente conseguiu pegar no sono. Ele sonhou com a batalha. Em seu sonho, milhares de pessoas armadas com escudos e espadas até os dentes, lutavam naquela vila. Antes mesmo da luta começar, o lago já estava lá, igualzinho, vermelho turvo. Depois que acabou a batalha, havia aquele mar de corpos mortos espalhados por todo o chão da vila. Devia ter uns mil, e apenas alguns vinte sobreviventes. Estes sobreviventes foram caminhando em direção ao lago vermelho, largaram as armas, despiram as armaduras, e banharam-se naquelas águas turvas. A pele deles não estava derretendo, e depois de banharem-se eles ainda continuavam vivos.
     Depois do banho, seu pai apareceu no sonho. Ele gritava com os guerreiros: "vá arrumar o seu quarto! Vá arrumar o seu quarto! Acorde logo moleque!!!"... E, sentindo um grande empurrão, o garoto acordou. Seu pai o balançava para lá e para cá, com força, mandando ele ir arrumar o quarto. Havia dias que ele não o arrumava, estava uma bagunça.

~*~

     Como de costume, logo que terminou de almoçar, ele saiu de casa e caminhou novamente em direção ao lago. Só que desta vez era um pouco diferente, ele estava indo para o lago para ver o lago, e não para fugir das críticas. Seus questionamentos do dia anterior, e o seu sonho, o preencheram de mais curiosidade. Ele queria descobrir o que de fato havia acontecido com aquele lago.
     No caminho, ele coletou algumas britas e colocou em seus bolsos. Pensou que deveria jogar alguma coisa no lago e verificar o que aconteceria.
     Chegando no lago, ele foi caminhando lentamente até a borda. Sentia-se um pouco apreensivo, com medo. Era tanta coisa que contavam sobre aquele lago, diziam que poderia acontecer tanta coisa ruim com quem tocasse nele, que ele estava um pouco assustado por estar se aproximando tanto.
     Com medo de chegar muito perto, parou há mais ou menos dois metros de distância, e colocou as mãos em seus bolsos para pegar uma daquelas britas, jogar no lago, e ver o que aconteceria.
     Quando foi retirar as mãos dos bolsos, uma daquelas sementes de cacau que sempre carregava foi arrastada do seu bolso para fora junto com sua mão, e então caiu no chão, rolando declive abaixo. Ele pensou, "não! A semente do vovô não!", mas já era tarde, ela já estava descendo em direção ao lago e era melhor ele não se aproximar mais, era perigoso, algo poderia acontecer, ele poderia escorregar.
     A semente foi então rolando vagarosamente para o lago. O garoto não tirou os olhos da semente, com tanta atenção, que não piscou o olhar um segundo sequer. Assim que a semente tocou no lago, ele arregalou os olhos, mas nada aconteceu. A semente simplesmente boiou.
     O garoto continuou olhando atenciosamente para a semente. Ela foi boiando lentamente para alguns centímetros a mais de distância da borda. Não era possível, nada acontecera? De repente, a semente se mexeu. Ele redobrou a atenção.
     A semente se abriu, boiando mesmo, e brotou. Uma muda saiu dela, e foi crescendo, rápido, muito rápido; mas não era cacau, uma linda flor amarela desabrochou daquela muda. Aquela flor era tão linda, que tocou o garoto por dentro. Ele nunca havia visto uma flor como aquela. Naquele momento, houve um silêncio. Tudo o que a atenção dele captava era a flor, o silêncio, e a sua própria respiração, em ritmo suave, como se fosse tudo uma coisa só. Era como se o tempo tivesse parado por alguns segundos. A flor continuou boiando mais um pouco, vagando lentamente para mais distante da borda, e então começou a desaparecer. Ela foi se desfazendo lentamente, se transformando em um pó brilhante, de várias cores, que subia em direção ao céu. Foi uma linda visão.
     O garoto, curioso, dispensou as britas que estavam em suas mãos, pegou mais uma semente de cacau das duas que lhe restaram, e arremessou no lago, mais distante, lá para dentro. O mesmo aconteceu, igualzinho, só que dessa vez era uma flor diferente, e ela era roxa. Ele pensou, "esse lago não pode ser tão ruim assim".
     Ele ficou observando aquelas águas vermelhas por alguns minutos, pensativo, sentindo grande vontade de tocá-la. Era uma grande tentação. Então ele se aproximou cuidadosamente, em passos curtos, e quando seu pé estava há aproximadamente uns trinta centímetros do lago, ele se agachou, com muito cuidado, apoiou uma mão no chão, e estendeu a outra, esticando o seu corpo para conseguir tocar o lago. Ele se desequilibrou, escorregou, e caiu em cheio nas águas turvas daquele lago.

~*~

     Logo que caiu, ele se assustou. O lago era mais fundo do que ele esperava, e ele não tocou o fundo. Era como se houvesse um grande degrau logo na entrada.
     No fundo das águas, ele tentou abrir os olhos para enxergar, mas não dava para enxergar coisa alguma. Apenas aquela vermelhidão opaca. Ele tentou nadar para a superfície, mas ao nadar, ele só encontrava água; estava perdido, sem norte. Sentiu medo. Nadou então com mais força, mas foi inútil, ele não encontrou a superfície. Ele achou que ia morrer afogado, estava ficando sem ar. Mas não foi isso o que aconteceu... Ele desmaiou.

~*~

    Ele desmaiou, como se o seu corpo tivesse morrido, mas ele continuava consciente. Sua respiração havia parado. Ele não conseguia se mover, mas ele ainda estava consciente de tudo o que estava acontecendo. Como se ele estivesse vivo em seu corpo, mas o seu corpo estivesse morto. Ele sentiu algo encostando nele, no seu braço esquerdo. Logo em seguida, ele sentiu aquele toque vindo de várias direções ao mesmo tempo, preenchendo cada espaço do seu corpo.
     Foi então que sentiu uma pressão, em todo o corpo, em direção ao seu centro. A água do lago parecia que estava entrando por dentro dele... Ele não conseguia ver o que estava acontecendo, ele somente sentia. A pressão foi aumentando, e aumentando, parecia que ele ia explodir... E foi exatamente isto o que aconteceu. Ele sentiu seu corpo explodindo, por dentro, mas sua carne não estava explodindo. Era algo dentro dele que estava explodindo. Explodindo em todas as direções ao mesmo tempo. Sua consciência se expandiu, muitíssimo rápido, numa velocidade extrema; e, por alguns milésimos de segundo, ele sentiu o universo inteiro, como se ele fosse tudo aquilo. Tudo parou. Não havia mais nada, ele era tudo. E então perdeu a consciência.

~*~

     Ele acordou na borda do lago, sequinho. Ele se levantou, coçou os olhos e olhou à sua volta. Tudo estava diferente, ele estava diferente. As árvores estavam bonitas, radiantes, estavam vivas. Ele nunca tinha visto aquilo. As folhas caíam das árvores lentamente, como se estivessem comunicando alguma coisa, e ele podia sentir isso. As árvores estavam falando com ele.
     Virou-se então e olhou para o lago. Que surpresa! O lago estava muito mais bonito do que o normal. Aquele vermelho brilhava em seus olhos, era um presente ver aquilo. Ele olhava para o lago e, ao mesmo tempo, parecia que o lago estava olhando para ele. Parecia que o lago estava dentro dele. Parecia que ele era o lago.
     Olhou para o céu e não podia acreditar. Parecia que ele tinha feito aquilo com suas próprias mãos. Sentiu uma intimidade tremenda com o céu, com o sol, com as nuvens. Todo o seu corpo se arrepiou e lágrimas desceram de seus olhos. Ele estava se comunicando com a natureza inteira! Mas não havia comunicação no sentindo convencional da palavra. Alguma coisa o tocava e era tocado por ele em tudo. Tudo parecia tão perto, tão íntimo, tão dele, tão ele. Era magnífico, e, por um breve momento, ele se esquecera de tudo. De quem era, das pessoas, de tudo. Não cabia espaço para mais nada.
     Então sua memória foi retornando aos poucos. Ele foi se lembrando das pessoas, de onde estava, e de quem era. Ele não podia ficar com aquilo tudo só para ele. As pessoas tinham que ver aquilo também.
     Correu para a cidade para espalhar a notícia de que o lago não era amaldiçoado, pelo contrário, era uma benção. O lago fazia o ser renascer divino. Contou para seus pais, amigos, irmãos, tios e até para as pessoas que ele nunca houvera conversado. As pessoas começaram a chamá-lo de louco, e dizer que ele queria os matar. Ele foi perseguido pelas pessoas, queriam que ele fosse preso. Então ele fugiu, correu em direção às montanhas, completamente frustrado e triste. Ninguém acreditava nele, pior que isso, mais uma vez ele fora rejeitado. Só que dessa vez era pior, ele não poderia mais voltar. As pessoas estavam desejando a sua morte.
     Chorando, arremessou-se em um pedaço de rocha e encostou a cabeça de bruços. Apesar de tudo, ter o universo inteiro e ninguém para compartilhar não havia sentido. Era como estar no céu e sentir-se no inferno.

~*~

     Encostado na rocha de bruços, sentiu uma mão tocar em seu ombro. Era uma mão bem calorosa, e ao tocá-lo, uma energia amorosa percorreu o seu corpo. Então ele se virou.
     Havia um ser, parecia humano, mas não dava para dizer se era homem ou mulher. Possuía cabelos compridos, loiros e encaracolados, longas asas brancas, e era de uma beleza extrema. Estava coberto por um manto azul. Uma luz percorria iluminando todo o seu corpo, e subia em direção ao céu. Não dava para ver o fim daquela luz. Parecia um anjo.
     Aquele ser olhou fundo nos olhos do garoto. Era um olhar intenso e penetrante, mas não era desconfortável. Pelo contrário, era um olhar aconchegante. E, sem nada dizer, apenas olhando-o, o garoto escutou:

- Você tem que entender uma coisa: você não pode esperar que as pessoas acreditem em você agora porque você deu um salto além delas. Você atravessou o mar e chegou na outra margem. Mas você foi o primeiro a fazer isso e a descobrir que havia uma margem do outro lado do mar. Agora que você chegou lá, você está buscando por outras pessoas que também estejam lá... Isto é completamente tolo, porque sendo o primeiro, não há mais ninguém lá, apenas você.
     Imagine comigo... Voltando há milhões de anos atrás, quando nós ainda nem existíamos e quando a maioria da vida era marinha. Imagine o primeiro peixe que conseguiu saltar para fora do mar para se tornar um anfíbio e respirar fora d'água. Se ele procurasse algum de sua espécia lá fora, ele passaria a vida inteira procurando e certamente morreria sem ter encontrado. Assim perderia a oportunidade de avisar aos outros peixes que era possível o salto, conseguindo então companhia para explorar fora do mar.
     Talvez os outros peixes não soubessem que era possível saltar e ali permaneciam. Por alguma razão, talvez a curiosidade individual, este primeiro peixe saltou e descobriu que era possível. Então ele não pode esperar encontrar outros peixes como ele lá fora, porque ele foi o primeiro a sair. O mais sensato seria ele voltar, contar para os outros peixes que é possível sair do mar, incentivá-los a sair, aí sim quem sabe, ter companhia lá fora.
     O que eu quero dizer é que o primeiro a dar um salto à frente de seus contemporâneos estará sozinho à princípio. Ele precisa estar consciente e aceitar isso, se não enlouquecerá. Se ele procurar por alguém como ele lá na frente, achando que irá encontrar, poderá passar por uma grande frustração desnecessária, perdendo um tempo precioso que poderia estar sendo usado para trazer outros de sua espécie também à frente.
     Lembre-se: um peixe não pode puxar o outro para fora do mar à força, porque ele precisará se adaptar às novas condições e poderá morrer porque não conseguirá respirar de primeira - o choque será tremendo e ele não terá o tempo necessário para adaptar sua respiração. O peixe de fora, poderá apenas mostrar que é possível sair, incentivá-lo, e esperar que ele venha por si só. É ele quem deve sair. Talvez ele não consiga de primeira e retorne para o mar. Talvez ele não esteja preparado ainda e tentará sair novamente quando estiver. Talvez ele consiga sair e respirar lá fora. É impossível prever. Mas, sendo ele tentando por si próprio, ele não estará correndo tanto risco porque estará seguindo o seu próprio instinto. É melhor ter ele respirando no mar, do que ter ele agonizando lá fora sem respirar.
     Esperar é uma virtude. Portanto não procure, espere. Mostre a possibilidade, incentive e aguarde. Sei que na outra margem a vida é extraordinariamente melhor... Mas lembre-se: é melhor você ter peixes respirando no mar, do que ter eles lá fora agonizando sem respirar.


~* Palavras que saíram da Boca.